quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Visitar Belém

Em Dezembro, Belém enche-se de peregrinos que vêm em grandes autocarros para visitar a igreja da Natividade, o lugar que marca o nascimento de Jesus. Param por algumas horas na cidade antiga, compram postais e souvenirs e partem, de volta a Jerusalém ou Nazaré, a seguir os caminhos de Jesus.
Natal em Belém
As poucas horas que passam em Belém são, para a maioria, o único contacto com os territórios palestinianos. Para os que vêm de transportes públicos de Jerusalém, a experiência pode incluir a paragem num checkpoint, onde é provável que, como turistas, sejam os únicos autorizados a permanecer dentro do autocarro enquanto os palestinianos se alinham para o controlo de segurança.

Em Belém, os meus guias foram meninos do campo de refugiados Aida, no norte da cidade, um campo delimitado pelo muro que separa a Cisjordânia de Israel. O muro de separação, de 8 metros de altura, construído por volta de 2000, rodeia e domina a vida no campo. Do outro lado está a única zona verde a que os residentes do campo tinham acesso, agora restrita. O muro tornou-se uma atracção turística depois de ter sido visitado por Banksy, que lá deixou alguns dos seus mais famosos graffitis

Graffiti de Banksy junto ao muro
Na Cisjordânia, há cerca de 19 campos de refugiados, criados pelas Nações Unidas para alojar os palestinianos que se tornaram refugiados em 1948 com a criação do Estado de Israel. Inicialmente erguidos com tendas e considerados temporários, os campos tornaram-se a residência permanente de milhares de pessoas. As tendas foram substituídas por edifícios precários e sobrelotados, onde a maioria dos habitantes vive abaixo da linha da pobreza e com uma elevada taxa de desemprego. No campo Aida vivem cerca de quatro mil pessoas. 

"A maioria das famílias tenta juntar dinheiro suficiente para deixar o campo e mudar-se para um apartamento em Belém", diz-me uma das coordenadoras do centro Lajee, uma associação que dá apoio às crianças e às famílias do campo. Enquanto falamos, confrontos entre jovens que atiram pedras e soldados que atiram bombas atordoadoras e gás lacrimogéneo acontecem lá fora. Ouvimos explosões, e enquanto eu estremeço com o barulho, os funcionários continuam a trabalhar sem um pestanejar. Fecham as janelas para não deixar o gás lacrimogéneo entrar e regressam ao trabalho.


Nas paredes do campo Aida
Nesse dia, os meninos do campo não tinham escola porque um colega tinha sido morto no dia anterior. Disponibilizaram-se logo a guiar-me pelo campo e a orientar-me na cidade, satisfeitos por saber que eu sou do país do Cristiano Ronaldo. Um dos meninos gostava do Messi, o outro sonhava ser como Ronaldo, e disse-me que queria casar com uma rapariga portuguesa. 

Para os rapazes que crescem sob as restrições do campo Aida, as aspirações são limitadas. Alguns sonham com bolsas de estudo no estrangeiro, outros com casamentos com raparigas europeias que lhes garantam um passaporte europeu. Querem bons empregos e segurança, querem viajar e ver o mar. Querem ver o que está para além do muro à sombra do qual vão crescendo, enclausurados com as poucas possibilidades de um futuro. 

O muro de separação
Do outro lado do muro, os israelitas subestimam esta falta de esperança. É o desespero que tem lançado os jovens palestinianos em ataques com facas contra soldados e colonos nos últimos meses. Não tem medo da morte quem tem poucas razões para viver.

"Amamos a vida sempre que podemos", diz Mahmoud Darwish, um dos mais importantes escritores palestinianos, num dos seus mais famosos poemas.

"Roubamos um fio de um bicho da seda para tecer um céu e um muro para a nossa viagem. 
Abrimos o portão do jardim para que o jasmim caminhe pelos ruas como um belo dia. 
Amamos a vida sempre que podemos. 
Onde nos instalamos crescemos plantas que florescem rapidamente. Onde nos instalamos colhemos um homem assassinado.
Amamos a vida sempre que podemos"

Mas os palestinianos estão habituados a não poder. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Os muros de Jerusalém

Jerusalém é indescritível, é uma cidade que não se explica e não se compreende.

É a mesquita da cúpula dourada, os papeis nas ranhuras do muro das lamentações e os peregrinos que percorrem a via dolorosa. É jasmim, oliveiras e buganvílias. É o som dos sinos seguido da chamada à oração vinda dos minaretes das mesquitas. É arame farpado, muros e soldados em cada esquina.

Vista do Monte das Oliveiras
Nunca vi uma cidade com a beleza de Jerusalém. Uma beleza surpreendente, mas refém de muros e cercada de arame farpado. A primeira impressão que tive ao chegar às portas da cidade antiga foi opressiva: eram demasiados muros, demasiado o peso de milhares de anos de história, demasiadas as tensões e conflitos por este pedaço de terra sagrado para três religiões diferentes.

Jerusalém, "cidade da paz", lê-se em cartazes espalhados pela cidade, numa alusão às possíveis raizes da palavra Jerusalém, yrw cidade e slm, paz. Soldados armados em cada esquina, checkpoints e residentes a passear com as suas metralhadoras estão lá para assegurar "a cidade da paz". Porque não há melhor maneira de garantir paz do que com M16 e uzis. Em Outubro, o presidente da câmara de Jerusalém aconselhou os residentes israelitas a carregarem sempre armas para "aumentar a segurança". 

Muro das Lamentações

Não sei como é ser israelita na cidade antiga de Jerusalém, mas metralhadoras em cada esquina não me fazem sentir mais segura. Em Hebron, uma cidade tensa, onde cerca de 800 colonos israelitas vivem rodeados por 30 mil palestinianos no bairro histórico, eram sempre os soldados de armas em riste e rostos cobertos que me faziam temer pela minha segurança.

A recomendação do presidente da câmara de Jerusalém foi uma resposta à onda de violência que começou em Outubro, com ataques a soldados e civis cometidos por palestinianos. Nos últimos dois meses morreram pelo menos 19 israelitas em ataques, e 117 palestinianos, dos quais cerca de 70 as autoridades israelitas disseram ser atacantes.

Cartazes cristãos
De manhã, enquanto caminhava em direcção à cidade antiga, encontrei a entrada cortada por soldados, e um rebuliço de ambulâncias e seguranças. Um ataque tinha acabado de acontecer próximo do portão da entrada. Um palestiniano tinha esfaqueado um soldado, e tinha sido alvejado e morto no local. Vi o corpo coberto por um plástico. No entanto, o que me chocou não foi estar tão perto da morte, mas a aparente normalidade da situação. 

À tarde, na mesma rua, a vida continuava como sempre. Onde o corpo jazia umas horas antes passeavam turistas, idosos e crianças, apesar do sangue na calçada não ter sido bem lavado. Porque é só mais um dia na "cidade da paz". 

Jerusalém, cidade de muros

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Deixar Hebron

"A vida na Palestina não é vida", diz-me Abu Rami, enquanto olhamos da janela para os blocos de cimento que soldados israelitas colocam na estrada para limitar o acesso à cidade de Hebron. No dia anterior, Abu Rami esperou quase duas horas no checkpoint, a apenas alguns metros de sua casa, depois de ter ido buscar a filha à escola.

"É exército, ocupação, soldados armados, ruas cortadas... não é vida", ele suspira.


Blocos de cimento bloqueiam a estrada em Hebron
A vida na Palestina não é vida, e a vida que é vale tão pouco... Nesse mesmo dia duas adolescentes palestinianas tinham sido abatidas como se fossem cães com raiva depois de terem tentado um ataque com tesouras em Jerusalém. Uma tinha 16, a outra 14 anos. Já estavam no chão, imobilizadas, mas o polícia fez questão de disparar. A câmara de segurança capturou o desprezo pela vida humana que se tornou tão banal. Porque aqui, matar adolescentes com tesouras é normal. É necessário para conter a onda de terror, dizem as autoridades israelitas. 

Desde Outubro, morreram mais de 100 palestinianos, alguns em ataques (efectivos e alegados) contra soldados israelitas e civis, outros em manifestações e confrontos com o exército. No mesmo período morreram 17 israelitas. Quase todos os atacantes eram adolescentes ou jovens, e grande parte vinha de Hebron. A cidade tem sido o principal palco de violência nos últimos meses.

"Precisamos mais do que observadores internacionais", diz-me Muafaq. Conhecemos-nos na demonstração semanal no centro da cidade, onde jovens palestinianos protestam contra a ocupação. Muafaq diz-me que organizações como a TIPH, observadores internacionais, não são suficientes para controlar a situação na cidade antiga e proteger as famílias que lá vivem.


A loja de um activista de direitos humanos
Saí de Hebron envergonhada, porque eu posso simplesmente sair, posso passar os checkpoints com um "shalom". Posso cansar-me dos soldados, dos protestos de sexta-feira cheios de gás lacrimogéneo e ambulâncias, das notícias diárias de violência e das ruas cortadas. Posso cansar-me e simplesmente sair, deixar a cidade, mas os que ficam têm que lidar com tudo isso diariamente. 

Quem vive em Hebron já está habituado a que partam: os activistas de férias, os observadores internacionais, as organizações de direitos humanos, os jornalistas. Ficam alguns dias, umas semanas, no máximo alguns meses, e depois deixam a cidade. "Todos deixam Hebron, mas é muito mais perigoso para nós do que para vocês", disseram-me. Parti sem conseguir deixar de me sentir culpada, por deixar os que me receberam como família, e por ter o privilégio de poder simplesmente partir.

Deixar a mesquita de Ibrahim, no centro de Hebron

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O medo tornado hábito

Hoje escrevo porque não posso sair de casa: é sexta-feira, dia de protestos em Hebron, no sul da Palestina, e o exército fechou a rua que dá acesso ao lugar onde estou a trabalhar e a viver. Enquanto escrevo, ouço lá fora o barulho de explosões e ambulâncias, e vejo nuvens de gás lacrimogéneo. Na semana passada, fiquei presa do outro lado, sem poder voltar a casa porque a minha rua se tinha tornado num campo de batalha. Fiquei no lado dos manifestantes, a ver rapazes adolescentes a atirar pedras.  

Nos últimos meses, os protestos de sexta-feira fazem parte da rotina dos habitantes de Hebron. De um lado, rapazes com keffiyeh ao pescoço atiram pedras e cocktails molotov, do outro, soldados israelitas atiram gás lacrimogéneo, bombas atordoadoras e balas de borracha. 


Granada de gás no chão da cidade antiga

Tinha acabado de chegar a Hebron quando me disseram que uma mulher de 73 anos tinha sido morta por militares no dia anterior, junto ao lugar onde ia viver. Na minha primeira semana de trabalho, um hospital no centro da cidade foi invadido por militares (um deles disfarçado de mulher grávida) que prenderam um paciente e mataram um dos seus familiares; dois colonos israelitas foram mortos por um palestiniano que disparou sobre um carro onde viajava uma família, e vários rapazes foram mortos ou ficaram gravemente feridos em confrontos com o exército. 


Grades, pedras e arame farpado fazem parte da paisagem
Aos poucos fui-me acostumando às notícias de morte, aos soldados armados nas ruas e ao clima de revolta e tensão. Fui-me acostumando à presença constante de armas no centro histórico, aos checkpoints, às pedras e granadas de gás lacrimogéneo espalhadas pelo chão. Mas na verdade, não sei como se pode viver diariamente no meio disto. Quando é que o medo e a morte se tornam hábito?

Hebron habitou-se à violência. É daqui que vêm grande parte dos agressores que têm aterrorizado israelitas nos últimos meses com esfaqueamentos nas ruas de Tel Aviv, Jerusalém e em colonatos. É aqui que palestinianos são abatidos por militares, no que várias organizações de direitos humanos consideraram um uso "intencional de força letal sem justificação". É aqui que, de cada lado, se celebram as mortes do inimigo. É aqui que cada lado se desumaniza, e que as vidas que são perdidas deixam de ser vistas como vidas humanas, para passarem a ser artilharia. 

Mas pequenos actos de resistência pacífica e palavras de tolerância ainda carregam esperança. Apesar de pensarem que eu era israelita, vários palestinianos receberam-me com "shalom" nas ruas principais de Hebron. Não acredito (ou não quero acreditar) que as pessoas estão cheias de ódio. Não estas pessoas, que vou conhecendo em deambulações pela cidade, que me convidam para tomar chá, que me sorriem, que abrem as portas das suas casas e me recebem de braços abertos. 


Numa padaria em Jaffa: "judeus e árabes recusam-se a ser inimigos"

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Hebron: "a cidade mais triste da Cisjordânia"

"Hebron é a cidade mais triste da Cisjordânia", diz Leila, enquanto bebemos chá na sua loja no centro histórico da cidade, no sul da Palestina.  A sua irmã Nawal criou o projecto Women in Hebron, uma cooperativa de mulheres que produzem peças bordadas tradicionais. "A nossa mãe ensinou-nos a bordar, é muito importante na tradição palestiniana", diz.

Leila, na sua loja no centro histórico de Hebron
Nawal começou por vender algumas peças que tinha bordado em 2005, em frente à mesquita de Ibrahim, no Túmulo dos Patriarcas, o mais importante monumento da cidade. As tensões em Hebron estão centradas neste monumento, que é sagrado tanto para muçulmanos como para judeus.

Em 2005, a situação económica nos territórios palestinianos era preocupante. Nawal começou por vender os seus bordados na rua, até lhe oferecerem um espaço no mercado antigo de Hebron, esvaziado devido às tensões na cidade. O negócio de Nawal foi crescendo, e a sua irmã tomou conta da loja, a única gerida por mulheres no mercado antigo. Outras mulheres de Hebron e aldeias vizinhas juntaram-se à associação, produzindo vestidos, carteiras e bolsas bordadas à mão. Hoje, são cerca de 150 as mulheres que fazem parte da cooperativa. 

Vestidos bordados à mão, alguns levam meses a ser feitos
"Vendemos peças feitas à mão para ajudar as famílias que vivem em Hebron", diz Leila. Mas as tensões na cidade antiga, esvaziada do movimento que outrora tinha, dificultam o negócio. "Vendemos online mas ainda não é suficiente", lamenta. No entanto, a falta de negócio não a preocupa tanto como a falta de segurança que sente diariamente. 

"Temos sempre medo", diz. Medo pelos filhos, medo dos soldados e dos colonos. "Quando os colonos vêm em visitas atiram-nos com coisas, cospem nas nossas caras, partem e destroem propriedade. Vêm com soldados para os proteger, mas ninguém protege os palestinianos. Se as nossas crianças fizerem alguma coisa são presas, mas às crianças dos colonos nunca acontece nada", desabafa. 

Na rua do mercado antigo, uma rede protege os palestinianos dos colonos que vivem nas casas em cima. Pedras, fraldas sujas, garrafas e sacos de lixo são atiradas pelos colonos, e vão-se acumulando na rede que separa os dois mundos: em baixo, o mercado colorido que vende keffiyeh, lenços e bordados palestinianos. Em cima, grandes bandeiras de Israel e soldados armados, de metralhadora em riste. Uma rede de separação, e um testemunho da humilhação diária sofrida pelos residentes e comerciantes na cidade antiga. 

Lenços palestinianos à venda no mercado e a rede com lixo
Hebron é uma cidade disputada. É considerada a segunda cidade mais sagrada para os judeus, por conter os túmulos dos patriarcas do judaísmo, mas é simultaneamente uma das cidades com a maior população palestiniana, e um centro de comércio e indústria na Cisjordânia. 

Nas últimas décadas a cidade tem sido ocupada por um número crescente de colonos israelitas que se instalam na cidade por razões religiosas. Em 1994, Baruch Goldenstein, um extremista judeu, entrou na mesquita do Túmulo dos Patriarcas armado e começou a disparar sobre os crentes que rezavam: 29 muçulmanos foram mortos, e centenas ficaram feridos. Depois do massacre, a mesquita foi dividida em duas partes, uma para os muçulmanos e outra para judeus, e as divisões e rivalidades foram acentuadas. 

Colonos israelitas alegam o seu direito de viver na cidade, mencionando uma presença judaica histórica na cidade. No início do século XX, Hebron tinha uma significativa população judaica, mas tensões entre árabes e judeus em 1929 levaram a um massacre na cidade: 67 judeus foram mortos depois de um incitamento à violência. 

Centenas de judeus foram protegidos pelos vizinhos (estima-se que mais de 400 foram salvos por famílias árabes que os esconderam nas suas casas), mas toda população judaica na cidade foi evacuada. Só após 1967 Hebron voltou a ser ocupada por judeus. Na sua maioria, colonos que se mudam para a cidade por razões religiosas. Divida em duas zonas (H1 de controlo palestiniano e  H2 de controlo israelita), na cidade centenas de colonos são protegidos pelo militares, e checkpoints espalham-se pelo centro histórico. 

"This is Palestine" mensagem apagada na parede
Organizações de direitos humanos reportam constantemente: por um lado as intimidações e agressões de colonos e soldados israelitas, por outro os ataques de palestinianos contra colonos. Entre elas, a organização israelita B'tselem, a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch

Conheci duas americanas voluntárias na organização Christian Peacemaker Teams. que me falaram do trabalho diário como observadoras internacionais. Acompanham crianças à escola para certificarem-se que não são atacadas por colonos ou soldados (o que é demasiado frequente), e dão apoio a famílias residentes no cento histórico.

"Não podemos parar as demolições de casas ou a violência, mas podemos certificar-nos que tudo isso é documentado", dizem. "O nosso trabalho pode não impedir a violência, mas pelo menos os palestinianos não estão sozinhos, e isso é muito importante", acrescentam.

Jamal nasceu no centro histórico de Hebron, onde viveu toda a sua vida. Leva-me até ao telhado de sua casa para me mostrar a vista, e os colonatos que se vão espalhando em redor. Diz-me que há uns dias, os soldados estavam a ensinar jovens colonos a usar armas num telhado próximo do seu. Diz-me que sofre quase todas as semanas com os efeitos do gás lacrimogéneo que é lançado, e com a insegurança e a tensão que se vive diariamente no bairro.

A vista do telhado de Jamal
"A minha vida está aqui. Não é uma vida boa, segura ou tranquila. Na verdade, é muito difícil, mas tenho tudo aqui e não tenho outro sítio para onde ir", diz Jamal. 

O rosto de Leila está marcado por apreensão enquando fala das suas lutas diárias. Nos últimos meses, o acentuar da violência esvaziou o mercado antigo, porque os visitantes têm medo de lá ir. "Há dias em que só consigo fazer 20 shekels (cerca de 4 euros)", diz. Mas a sua cooperativa é uma forma de resistência: com agulhas, ponto a ponto, luta para preservar a tradição palestiniana.

Carteiras à venda na cooperativa

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Israel : o mosaico desajustado

Aterrei em Tel Aviv, em Israel, "a única democracia do Médio Oriente", no início de Novembro. No controlo de passaportes, a funcionária começou um interrogatório que foi interrompido por gritos e ameaças quando ouviu a palavra "Palestina". 

Aconselharam-me a não mentir e foi o que fiz. Depois de gritarem comigo mandaram-me para uma sala onde aguardei que outro funcionário chegasse para continuar o interrogatório interrompido na fila de controlo dos passaportes. Outros viajantes sentavam-se a esperar, e um segurança estava à porta a certificar-se que nenhum de nós saía da sala. 


"Onde vais?" "O que vais fazer?" "Porquê?", continuou o interrogatório. Evitei voltar a falar da Palestina, mencionei o voluntariado com crianças em Hebron, a vontade de viajar pelo território e de trabalhar num kibbutz (este último bastante improvável). Acho que foram os kibbutz que me salvaram, e fizeram com que me dessem o visto pouco depois.

Mas passei demasiado tempo a imaginar que me deportavam, e que não iria poder entrar no território. Que só ia ver a cúpula dourada da mesquita de Jerusalém em fotografias, e imaginar como seria flutuar no mar Morto: condição a que muitos palestinianos estão condenados. A impossibilidade de pisar a terra tão sonhada, de onde as raízes foram cortadas antes de sequer nascer. 


Desenraizamento: laranjeira suspensa do artista Ran Morin (Yaffa)
Foi essa condição que primeiro me ligou a esta terra. Há três anos atrás conheci Obai em Lisboa. Obai é palestiniano, mas não tem o direito de entrar em Israel ou nos territórios palestinianos. Tal como outros milhões de palestinianos deslocados, que compõem uma das maiores populações apátrida do mundo, a sua nacionalidade é fragmentada. Foi o seu desenraizamento que me ligou a esta terra, fascinante com toda a sua história e beleza, com todas as suas contradições, injustiças e complexidades. 

Em Tel Aviv fui supreendida pela diversidade cultural de Israel. Fui com a ideia pré-fabricada do israelita descendente de judeus europeus, branco e ocidental. O que vi ao chegar foi um cenário completamente diferente. A população de Israel é multicultural e imensamente diversa. A elite israelita é liderada por judeus brancos, mas para além dos judeus descendentes de europeus, há judeus asiáticos e judeus africanos que compõe uma percentagem muito significativa da população, para não falar da população não-judaica, os 20% de árabes/palestinianos que compõe a demografia israelita.


Israel é um mosaico que não encaixa
O primeiro israelita que conheci foi Jacky, nascido em Marrocos.  Empresário de sucesso, Jacky fala hebraico, árabe e inglês, mas a sua língua materna é o francês. Israel é um dos países com a maior diversidade linguística. Para além do hebraico e do árabe que constituem as línguas oficiais, inglês, russo, francês e amárico são línguas amplamente faladas. 

Por isso vi em Israel um mosaico desajustado: um estado judeu embutido num território onde vive uma população não-judaica, e onde ser judeu adquire mil tons e significados. Basta olhar para o mapa e ver no picotado das fronteiras as peças que não encaixam.

Yaffa - a cidade antiga árabe

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Perder Sarajevo

"Viajar! Perder países! Ser outro constantemente..."

Fernando Pessoa faz com que pareça fácil. Mas perder países pode ser extremamente doloroso. Deixei Sarajevo no fim de Outubro como quem deixa um amante. Não sabia que se podia amar assim uma cidade, para além da nossa, a que chamamos casa.


Sarajevo foi a minha casa durante alguns meses. Senti-me logo acolhida, aconchegada pelas montanhas que rodeiam a cidade e a sua beleza. Adorava cada pequeno detalhe, cada parte da rotina que fui criando.

Adorava o cheiro do pão quente da padaria perto de minha casa. Adorava ir de bicicleta de manhã para o trabalho, pedalar junto ao rio que atravessa a cidade e beber café bósnio no meu sítio preferido, onde um gato vinha deitar-se no meu colo e os empregados já sabiam o meu nome. Adorava o nevoeiro nas montanhas e o som da chamada à oração dos minaretes que preenchem a linha de horizonte de Sarajevo, especialmente quando se misturava com o som de sinos das igrejas mais próximas.


Sa-ra-je-vo. Até a palavra tem algo de mágico. Pronuncio-a, e com ela a saudade dessa cidade que quis fazer minha e a dor de a perder. 

"Viajar assim é viagem,/ Mas faço-o sem ter de meuMais que o sonho da passagem.O resto é só terra e céu."

Terra e céu, enquanto esvazio a mochila da Bósnia e a preparo para a Palestina. Terra e céu, enquanto voo em direcção a Tel Aviv. 

"Não pertencer nem a mim!Ir em frente, ir a seguirA ausência de ter um fim/
E a ânsia de o conseguir!"

Aterrar em Tel Aviv

sábado, 31 de outubro de 2015

Mostar: os estilhaços por reunir

Mostar está na capa de todos os guias turísticos da Bósnia, com a sua famosa ponte construída pelo império otomano no século XVI. O rio Neretva que atravessa cidade rodeada de montanhas e o belo centro histórico fazem de Mostar um dos mais atraentes pontos turísticos da região, mas nada me preparou para a invasão massiva do turismo que vi na cidade. Pelas ruas estreitas de calçada de pedra, lojinhas vendiam as mesmas souvenirs produzidas em massa, os mesmos lenços pashmina e ímanes e postais coloridos com a ponte reproduzida mil vezes.


Grupos de turistas em excursões da Croácia enchiam as ruas e tornavam difícil caminhar, gravitando em torno da bela ponte arqueada. Rapazes em fato de banho pediam dinheiro para saltar da ponte, fazendo circular chapéus para recolher as moedas. 

Um mergulhador prepara-se para saltar da ponte
Mas a ponte, que dá nome à cidade (most significa ponte em bósnio), nem sempre se ergueu assim majestosa. Entre 1992 e 95, os conflitos entre muçulmanos e croatas fizeram de Mostar um campo de guerra, uma das cidades mais bombardeadas no país. A ponte foi destruída por nacionalistas croatas em Novembro de 1993. Foi reconstruída em 2004, mas as divisões na cidade persistem.

Mostar permanece uma das cidades mais divididas da Bósnia: o oeste é muçulmano e o leste croata. A cidade tem duas companhias de electricidade, duas redes de telefone, dois serviços de correios, duas universidades. Crianças croatas e crianças muçulmanas vão a escolas separadas, e aprendem a partir de livros diferentes, diferentes versões da história.

Mas nem sempre foi assim. Antes da guerra Mostar, era considerada uma das cidades mais multiculturais da Bósnia, e um símbolo de tolerância e coexistência pacífica. A família de Romana, uma das minhas colegas de trabalho, era de Mostar. O pai é muçulmano, a mãe é croata e sérvia. Antes da guerra, Mostar tinha o maior número de casamentos mistos do país.

Ninguém sabe explicar bem onde correu mal, ou como os movimentos nacionalistas trouxeram discursos de ódio, e puseram vizinhos e amigos a lutar uns contra os outros, mas os vestígios da guerra ainda são muito visíveis.

Portão baleado em Mostar
A destruição foi planeada em grande escala: os tanques apontavam para as mesquitas, as igrejas, os museus e biblioteca. Apontavam para o património cultural. No alvo estavam os lugares simbólicos, e o objectivo era para apagar a memória do que a cidade foi, ao ponto de se falar de um urbicídio: matavam Mostar lentamente.

Brisko é conhecido por todos na cidade como o homem que atravessou a ponte pela última vez antes de ser destruída. Estava a atravessar a ponte para levar água para a família quando granadas começaram a ser atiradas. “Não consigo compreender o facto de ter experienciado isso e sobrevivido. Imagino o que terei feito para que deus me tenha salvo”, diz-me, quando nos encontramos junto à ponte. 

Brisko caminha comigo pela nova ponte, agora cheia de turistas. Mostra-me o lugar onde caiu a primeira granada, e diz-me que pensou que ia morrer na ponte e cair com ela nas águas do rio Neretva. Correu o mais rápido que pôde, e quando chegou ao fim da ponte estava coberto de pó branco. “Não tinha nem um arranhão, mas estava tão branco como um moleiro”.

Brisko Corda, o último homem a atravessar a ponte
Mas Brisko diz-me que apesar de não se ter ficado ferido, sente que uma parte dele também caiu com a ponte. “Não só uma parte de mim mas de todos os que nasceram em Mostar e sentiram que a ponte fazia parte das suas vidas”, diz.

Mas nem só os que nasceram em Mostar choraram pela destruição da ponte que se ergueu por mais de 400 anos. Por toda a Bósnia e pelos Balcãs, adultos choraram a queda da ponte otomana. E até os que nunca a viram ao vivo sentiram o desastre da sua destruição.

“Esperamos que as pessoas morram, mas a ponte, com toda a sua beleza e graciosidade, foi construída para viver mais que nós: era uma tentativa de alcançar a eternidade”, escreveu Slavenka Drakulić, jornalista croata, numa crónica que lamenta a destruição da ponte que nunca chegou a atravessar.


Apesar da ponte ter sido reconstruída com fundos da Unesco em 2004, Mostar ainda é uma cidade dividida. Muitas crianças croatas que vivem no leste da cidade crescem sem nunca ter sequer atravessado a ponte histórica, que fica no lado muçulmano, a oeste.

Se por um lado o centro está saturado de turistas, por outro Mostar ainda é uma cidade com ruínas, fachadas destruídas e feridas da guerra que não sararam. É uma cidade cheia de estilhaços por reunir.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A saudade bósnia e a jugo-nostalgia

Foi numa segunda-feira à noite, num bar que era antes um cinema, que descobri a saudade na Bósnia. Todas as segundas, o bar Kino Bosna, no centro de Sarajevo, recebe músicos que tocam Sevdah, a música tradicional da Bósnia e Herzegovina. Envolta em nuvens de fumo de cigarro, ouvi os músicos cantar melodias melancólicas que me lembraram o fado. Com guitarras e um acordeão, cantavam sobre amores perdidos, desejos frustrados… e eu ouvia surpreendida, a imaginar as mesmas músicas com guitarras portuguesas a ecoar nos becos de Lisboa.

Kino Bosna em Sarajevo
Mais tarde, descobri que as semelhanças são mais profundas. A palavra Sevdah vem do árabe sawda (bílis-negra), raiz que também deu origem à palavra saudade. Saudade-Sawda-Sevdah. Ali estava eu, num bar que tinha saudades de ser cinema, a ouvir fados à moda da Bósnia, regados com rakija e envoltos em fumo. Os músicos rodavam a sala, tocando de mesa em mesa, e dezenas de vozes juntavam-se para cantar as mesmas canções.

Na língua bósnia não existe uma palavra para saudade. A melhor tradução é nostalgija. Mas a saudade faz parte do vocabulário de cada bósnio, em especial a saudade dos tempos anteriores à guerra.

Conheci Sanja, uma professora de inglês, num café no centro de Sarajevo. Simpática e faladora, Sanja mostrou-me uma fotografia do pai, segundo ela um importante general, a apertar a mão de Tito. Falou-me com orgulho do pai, da admiração por Tito, e da nostalgia dos tempos dourados da Jugoslávia.
Yugo: o carro produzido na Jugoslávia
“É pena que sejas tão nova”, disse-me Sanja. “Se pudesses viver em Sarajevo um só dia nos tempos antes da guerra…”, suspirou. “Era maravilhoso. Tínhamos um grande país”.

Que tudo era melhor antes da queda da Jugoslávia é algo que já tinha ouvido antes várias vezes, mas nunca dito com tanta sinceridade e emoção. A Jugo-nostalgia é um fenómeno recorrente nos países da antiga Jugoslávia. Mas para os bósnios, os que mais sofreram com o desmantelamento da Jugoslávia que levou o país a uma longa e violenta guerra, a jugo-nostalgia vem misturada com os sentimentos de perda e melancolia da saudade.

“Tudo era melhor antes da guerra”, diz-me Strahinja, estudante de Ciência Política, apesar de ser demasiado novo para se lembrar de como era. “A cultura, a economia… tudo piorou depois da guerra”. Strahinja prefere a música e os filmes da antiga Jugoslávia. Mesmo entre os que já nasceram numa Bósnia dividida pela guerra, permanece a nostalgia de um país próspero, multicultural e pacífico, a Jugoslávia de Tito.

Josip Broz Tito, líder da resistência anti-fascista dos Partisans, assumiu o poder da federação jugoslava no final da Segunda Guerra Mundial. Tito governou sobre o lema “irmandade e unidade”, suprimindo os movimentos nacionalistas para manter unida uma Jugoslávia multiétnica e multirreligiosa. Foi reeleito cinco vezes, e nomeado “presidente vitalício”.  Depois da sua morte, em 1980, o crescimento dos movimentos nacionalistas levou à luta pela independência das repúblicas e à dissolução da Jugoslávia.

Yu-café; retratos de Tito
Em Sarajevo, um bar foi dedicado a Tito, e no Yu-café, a jugo-nostalgia enche as paredes de retratos do presidente e bandeiras da Jugoslávia. Também há o hostel Tito, e a avenida Marshal Tito ainda é uma das mais movimentadas da cidade. 

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Višegrad: apagar a história

A primeira vez que ouvi falar sobre Višegrad  foi no livro A Ponte sobre o Drina, romance que valeu a Ivo Andrić, escritor jugoslavo, o prémio Nobel da literatura em 1961. Baseado na ponte Mehmed Paša Sokolović, construída pelo império otomano no século XVI em Višegrad, no leste da Bósnia, Andrić conta as histórias dos que lá vivem ao longo dos séculos, os impérios que se vão sucedendo, as pessoas que nascem e morrem, e a ponte que permanece como testemunha silenciosa da história.

Quis visitar Višegrad para ver essa ponte celebrada pela literatura, mas foram outras leituras que me levaram à cidade no leste da Bósnia: relatórios e artigos sobre os crimes lá cometidos durante a guerra entre 1992 e 95.



Nos anos 90, com o desmantelamento da Jugoslávia e o crescimento dos movimentos nacionalistas, a Bósnia, um território multirreligioso e multiétnico, mergulhou em guerra. Nacionalistas sérvios recusaram-se a reconhecer a independência da Bósnia, e apoiados pelo governo de Slobodan Milosevic lutaram para assegurar o território sérvio.

A maioria dos crimes cometidos durante a guerra foram contra bósnios muçulmanos. Uma campanha de limpeza étnica levada a cabo por nacionalistas sérvios no leste da Bósnia foi eficaz em esvaziar o território da presença muçulmana, com assassinatos, violações, tortura e expulsões. Em Srebrenica, 8000 civis muçulmanos foram mortos em apenas alguns dias, em Julho de 1995.

Em Višegrad, uma campanha de limpeza étnica foi eficazmente organizada. Antes da guerra, os muçulmanos constituíam aproximadamente 60% da população de Višegrad, e os sérvios cerca de 30%. Hoje, a população em Višegrad é quase exclusivamente sérvia, a rondar os 95%, e faz parte da Republika Srpska, a entidade sérvia da Bósnia.

Fui a Višegrad à procura dos vestígios da presença muçulmana, e dos crimes lá cometidos. Fui levada pelo interesse na luta por uma memória colectiva, e a cultura de negação dos crimes cometidos por sérvios durante a guerra. Ainda hoje, as autoridades sérvias recusam-se a reconhecer os massacres em Srebrenica como genocídio.

No centro da cidade visitei Andrićgrad, uma pequena vila construída pelo realizador Emir Kusturica em homenagem ao escritor Ivo Andrić: ruas com calçada de pedra, lojinhas de souvenirs, uma igreja ortodoxa. Mas nenhum vestígio da presença muçulmana.

Igreja ortodoxa em Andrićgrad
Caminhei pelas ruas de Višegrad à procura de mesquitas, mas quase todas foram destruídas durante a guerra. Apenas duas foram recuperadas nos últimos anos, mas quando tentei visitá-las encontrei-as vazias. Também tentei visitar o cemitério muçulmano, mas o portão verde estava fechado à chave. Das grades, consegui ler as datas nas lápides brancas: 1992, 1992, 1992.


Cemitério muçulmano : 1992 é a data gravada em grande parte das lápides
Quis visitar um outro sítio, importante no meu roteiro macabro: o hotel Vilina Vlas, um spa que durante a guerra foi transformado num campo de violação. Cerca de 200 mulheres foram presas nos quartos e mantidas como escravas sexuais. Muito poucas saíram do hotel com vida. Depois da guerra, o hotel foi limpo, mas tudo continua igual: os hóspedes dormem nas mesmas camas, nos mesmo quartos. O filme da realizadora bósnia Jasmila Žbanić, For Those Who Can Tell No Tales, é passado neste hotel e baseado na experiência verídica da artista australiana Kym Vercoe como turista na Bósnia. 

Cheguei a Vilina Vlas hesitante. Sei o que aconteceu lá há 20 anos, toda a gente em Višegrad  sabe, mas os hóspedes no hotel caminham com preguiça balnear como se nada tivesse acontecido. Estendem toalhas e fatos de banho coloridos, apanham sol nas varandas de onde as mulheres saltavam para o suicídio: para muitas a única saída, prisioneiras nos quartos e sujeitas a constantes violações e abusos.
Varandas de Vilina Vlas
No hotel tudo está escrito em cirílico, alfabeto usado pelos sérvios, e Danilo, um dos poucos empregados que fala inglês, vem receber-me. Finjo-me interessada na história das águas termais do hotel, nos banhos turcos com 500 anos, e subtilmente vou perguntando pela guerra. Danilo começa a suar, fica nervoso. “Não falamos sobre a guerra. O passado é passado, só olhamos para o futuro”, diz-me. Entretanto, o gerente do hotel vê-me na entrada, a falar com Danilo e a tirar notas no meu caderno. Parece furioso, subitamente alerta, diz alguma coisa em sérvio, e Danilo avisa-me que a conversa acabou, encaminha-me para a porta, diz-me que posso visitar os banhos turcos, mas mostra claramente que tenho que ir-me embora.

No centro da cidade, procuro a rua Pionirska, onde 70 pessoas foram queimadas vivas numa casa, a 14 de Junho de 1992. Passo junto à escola primária Vuk Karadžić, onde prisioneiros eram torturados, e sei que a casa que procuro está perto, mas a falta de placas deixa-me desorientada. Pergunto na rua, e a reacção das pessoas que encontro é a mesma que recebi no hotel. Pionirska? O que procuras em Pionirska? As respostas são ásperas e agressivas, os olhares desconfiados. Só um rapaz com os seus 15 anos falava inglês, e pareceu disposto a ajudar-me. “Pionirska é ali, o que procuras?” ele pergunta. Hesito na resposta, um memorial, eu digo. “Onde sérvios mataram muçulmanos?” ele dispara, sem hesitação. Sim, onde sérvios mataram muçulmanos, mas isso aconteceu por toda a cidade, por toda a Bósnia.

Ele sabe onde fica, diz que pode mostrar-me onde é. Mantém a conversa curta e concisa, diz-me que a família se mudou para Višegrad durante a guerra, e que a mãe vivia numa casa perto do lugar do massacre. “Foi obra do Lukic”, ele diz. Milan Lukic, responsável pelo fogo que matou mulheres, crianças e idosos, foi condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Internacional para a Antiga Jugoslávia.


Casa em Piorniska : agora um memorial às vítimas
“Aqui, alguns acham que ele é um herói, outros que é um homem mau”, diz-me o rapaz. Não me atrevo a perguntar o que ele acha, e assim que chegamos à casa que agora é um memorial, ele vai-se embora. A casa é simples, pintada de branco. Na cave, onde 70 pessoas foram trancadas e queimadas vivas, há flores em memória das vítimas. Uma placa com letras douradas assinala o massacre. Milan Lukic era líder do grupo paramilitar Águias Brancas, que aterrorizou a população muçulmana em Višegrad . A longa lista de crimes pelos quais foi condenado inclui o assassinato de centenas de pessoas, tortura, agressão e destruição de propriedade.

A minha visita termina na famosa ponte, a primeira razão que me fez querer vir a Višegrad . Na rua, há comerciantes a vender ímanes e postais, retratos de Ivo Andrić. Caminho lentamente pela enorme ponte branca, e paro no centro. Durante a guerra, homens, mulheres e crianças eram alinhados na ponte, mortos e atirados para o rio. Os corpos eram tantos que o inspector da polícia de Višegrad chegou a receber uma queixa do gestor de uma hidroeléctrica no Drina: "podem por favor reduzir o número de cadáveres mandados pelo rio? Estão a entupir a barragem", conta um jornalista do The Guardian em 1996.

A história repete-se. Em Julho deste ano, descalcei os sapatos junto às margens do Danúbio, em Budapeste, para homenagear os 15 mil judeus que lá foram mortos. Não se sabe ao certo quantos muçulmanos morreram no rio Drina, mas nos anos 90 as águas corriam vermelhas com o sangue. Estima-se que cerca de 4 mil muçulmanos terão sido mortos em Višegrad durante a campanha de limpeza étnica na guerra.


O único memorial das vítimas muçulmanas está na casa Piorniska, que as autoridades locais estão a tentar destruir para a “construção de uma estrada”. Mas no centro da cidade há um enorme monumento aos soldados sérvios que lutaram “pela defesa da República Sérvia”. 


Monumento aos soldados sérvios: uma cruz e uma espada
Em Višegrad não bastou matar e expulsar os habitantes muçulmanos, tentou-se também apagar qualquer vestígio da sua presença.  Hoje, apaga-se a memória com o silêncio. Não se fala da guerra, não se fala do que aconteceu em Vilina Vlas, em Pionirska, ou na ponte. Como se Višegrad sempre tivesse sido sérvia e ortodoxa.