segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Holanda, a tradição e a "ressaca colonial"

Quando me mudei para a Holanda há uns meses atrás achei que estava a mudar-me para um país progressivo, considerado um dos países mais avançados em termos de direitos, liberades e tolerância, sempre no topo dos rankings de progresso social. 

Quando Dezembro começou a aproximar-se, foi com choque que comecei a ver inesperadas caricaturas racistas em montras de lojas espalhadas um pouco por toda a cidade. Amigos holandeses explicaram que se tratava do Zwarte Piet, em português o "Pedro Negro", uma figura do folclore holandês. Segundo a tradição holandesa, o Pedro Negro é o ajudante de São Nicolau, que em Dezembro vem aos Países Baixos distribuir doces e prendas às crianças.


Vestido com trajes renascentistas, para muitos uma clara referência ao colonialismo e escravatura do Império Holandês, esta figura não incomoda a maioria dos holandeses. Em desfiles durante o final de Novembro e o início de Dezembro, as ruas estão cheias de holandeses que pintam a cara de preto, desenham enormes lábios vermelhos, põe perucas crespas e vestem o traje do Pedro Negro, o ajudante apalermado de São Nicolau.



Nos últimos anos, a sociedade holandesa tem debatido esta tradição que é vista no exterior como ofensiva e racista. Em 2015, as Nações Unidas pediram o fim da caricatura do Pedro Negro, "retratado de forma a reflectir estereótipos negativos de pessoas com ascendência africana, e visto por muitos como um vestígio da escravatura". Mas a maioria da população holandesa não vê no Pedro Negro uma figura racista, e resiste a mudar a tradição, descrita num documentário recente como uma assutadora "ressaca colonial".



Quando o desfile veio a Leiden, a pequena cidade universitária onde estou a viver, decidi juntar-me a um grupo de activistas locais para protestar contra as representações racistas. Naomi, uma activista holandesa com raízes afro-caribenhas, disse-me que a tradição sempre a fez sentir desconfortável. "Na escola sentia-me sempre muito desconfortável nesta altura do ano", disse. "Sentia-me diferente, achava que não era normal. Sentia-me mal. Na altura era muito nova e não sabia o que era racismo. Mas depois começei a ler, a fazer pesquisa sobre racismo, privilégio branco". 




Nos últimos anos a opinião pública tem vindo a mudar lentamente, "mas porque é que tem que demorar tanto?" pergunta Naomi. Somos cerca de 30 activistas, num canto da rua principal de Leiden, rodeados de barreiras de metal e polícia, enquanto várias centenas de pessoas se juntam para ver o desfile. Não podemos sair da zona fechada que nos foi destinada para protestar, vedada para nos proteger de um grupo de extrema-direita que nos ameaçou e confrontou. "Acho que querem silenciar-nos", diz Naomi.



Os nossos cartazes são quase invisíveis no pequeno canto vedado, enquanto a multidão aplaude o desfile de caricaturas: caras pintadas de negro, gigantescos lábios vermelhos, perucas apalhaçadas, argolas de ouro e trajes renascentistas que já estão enraizadas no imaginário holandês. Mas outras figuras, mais chocantes e assustadoras, também aparecem: crianças loiras com as caras pintadas de negro, perucas negras com ossos presos nos caracóis crespos, e tecidos com padrão de leopardo, como a mais ofensiva e ultrajante caricatura imaginável. 



Ghaled, um dos organizadores do protesto, diz-me que se preocupa especialmente com o impacto que estas representações podem ter nos mais novos. "É muito mau para as crianças. Não só as crianças negras, mas todas as crianças" que crescem com estas imagens, diz-me. Logan, um professor americano a viver na Holanda há quatro anos que também participa na manifestação, concorda que a imagem do Pedro Negro é "terrível" para os mais novos, especialmente quando "a única imagem que se vê é um estereótipo".



Alguns holandeses reagem com hostilidade aos nossos cartazes, confrontam-nos para nos dizer que o Pedro Negro não é racista. Para Logan, não cabe ao holandês branco decidir o que é ou não racista. Diz-me compreender "que tradições e crenças profundamente enraizadas sejam difíceis de mudar" e que aceitar que a figura que faz parte da infância dos holandeses é racista pode ser difícil para muitos. Mudar uma tradição enraizada pode ser difícil, mas espanta-me a maneira como alguns holandeses zangados vêm gritar connosco para nos dizer que não temos razão, incapazes de admitir que muita gente se pode sentir ofendida com a tradição.

Os defensores mais tenazes do Pedro Negro dizem estar a defender a "nossa" tradição, e que os imigrantes e filhos de imigrantes (muitos nascidos e criados na Holanda) não têm o direito de mudar a "nossa" tradição. O debate não é só sobre a negritude do Pedro Negro, mas também sobre a brancura da sociedade holandesa. Sobre quem tem poder para decidir o que é a tradição, e como deve ser representada. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Infância interrompida: fotografias tiradas por crianças sírias

A vida para os refugiados sírios na Turquia é especialmente difícil para as crianças. Forçadas a deixar as suas casas, a interromper os estudos, e a adaptar-se a condições difíceis de instabilidade e vulnerabilidade, as crianças sírias têm que crescer demasiado rápido.


Crianças com menos de doze anos trabalham doze horas por dia, seis dias por semana, para ganhar um salário muito abaixo do salário mínimo na Turquia, essencial para sustentar as famílias.

“Trabalho numa máquina de costura dez horas e meia por dia, seis vezes por semana. A minha mãe era professora na Síria e eu era um aluno muito aplicado. Sinto muito falta da escola, mas agora tenho que trabalhar. O meu pai está na Alemanha, e a minha família ainda está à espera para se juntar a ele. Quando conseguirmos ir para lá espero poder continuar os meus estudos.”
-Ahmed, 13 anos


De acordo com a Unicef, mais de metade dos 2,7 milhões de refugiados sírios registados na Turquia são crianças, e só 20% está a frequentar uma escola formal. Apesar do governo turco ter concedido a crianças sírias o acesso a escolas públicas, a grande maioria não pode usufruir da educação a que tem direito devido a barreiras linguísticas, dificuldades económicas e falta de informação e de integração.

“A minha vida aqui não é boa. A língua turca é difícil e eu não consigo aprender. Somos sírios e [os turcos] tentam envergonhar-me. Querem que sinta vergonha por ser da Síria. Mas eu não tenho vergonha, nunca! Tenho orgulho de ser síria. Há tantas crianças turcas que não provocam… gritam palavras feias. Deixa-me muito zangada. Não quero ficar aqui. O meu único sonho é voltar para casa. Não quero mais nada.”
- Aisha, 10 anos


Muitas crianças não vão à escola por não falarem turco, ou porque tem dificuldades em integrar-se. Para combater este problema a Revi, um grupo de voluntários internacionais e locais, abriu três escolas para mais de 100 crianças na cidade costeira de Izmir, onde vive um grande número de refugiados sírios. A Revi conseguiu contractar cinco professoras sírios da comunidade, e dar aulas de turco e inglês, para além de desenvolver projectos de integração.


No Verão de 2016, ajudei a Revi a organizar um workshop de fotografia para crianças sírias a viver em Izmir. Demos máquinas descartáveis a várias crianças e pedimos que fotografassem o seu bairro. Os resultados foram surpreendentes: um olhar comovente sob a vida no bairro sírio de Izmir, com as suas ruínas e edifícios decrépitos, mas também com os seus mercados coloridos que vendem produtos de Alepo, um vendedor de algodão doce e até um raio de sol a iluminar um beco.



“Estava a estuda na Síria e queria continuar a ir à escola, mas por causa da guerra não pude. Estou a estudar aqui, mas não estou feliz. Não quero ver crianças sem poderem ir à escola, ou a chorar. Chega de guerra… não quero ver pessoas com armas.”
- Nadia, 10 anos


“Vi morte, sangue, violência mesmo à minha frente. Era tudo tão difícil. No início tinha medo de tudo, mas o que vi deu-me força. Tenho muita esperança na Síria. Acho que vai voltar ao que era antes da guerra. E como eu, as coisas terríveis que a Síria viu vão tornar o país mais forte.”
- Aisha, 10 anos


“O meu trabalho é a costura. A maioria dos sírios que estão a viver na Turquia trabalha nesta área. Passamos a maior parte do tempo a trabalhar. Não sinto satisfação, mas tenho que o fazer. Estou sozinho aqui, a minha família ainda está na Síria, falamos uma vez por mês. Já estou aqui há nove meses, tenho tantas saudades…”
- Mahmoud, 15 anos



A Revi está a receber donativos que ajudem a apoiar as suas escolas e o programa “Work to School”

(Todas as fotografias foram tiradas por crianças sírias em Izmir, na Turquia)

domingo, 21 de agosto de 2016

De passagem por Calais

A pequena cidade de Calais, no norte de França, tornou-se num porto de miséria desde o verão passado, quando a crise de refugiados começou a chegar à Europa. 

No norte de Calais, um dos principais pontos de acesso ao Reino Unido, improvisou-se um campo de refugiados, onde milhares de pessoas esperam, presas por quilómetros de cercas cobertas de arame farpado, por uma oportunidade para atravessar os cerca de 50 quilómetros que separam o porto francês da Inglaterra. 

As cercas e o arame farpado que rodeiam o campo custaram 15 milhões de euros ao governo britânico, enquanto cabe à polícia francesa vigiar as fronteiras e estradas.


Uma enorme força policial patrulha o desespero de milhares de pessoas com indiferença ou crueldade. Estão lá para se certificar que as estradas vedadas para o Reino Unido são só para os que têm o passaporte certo. E enquanto eu atravessei facilmente essas estradas, de passagem pelo norte de França, milhares enfrentam a polícia e o arame farpado, tentam entrar em camiões de mercadorias ou comboios arriscando a vida para atravessar o Eurotúnel até Inglaterra. 

Milhares de pessoas chegam a Calais depois de enfrentarem dificuldades inimagináveis, com esperança de conseguirem pedir asilo no Reino Unido, fugidos de países devastados pela guerra. Esperam por uma oportunidade na "selva" de Calais, como os moradores chamam ao acampamento improvisado no norte da cidade. 


Calais é pobreza, desespero, pó. Mas é também uma enorme energia e hospitalidade, momentos simples de alegria, e o engenho e a criatividade para construir casas, igrejas, mesquitas e lojas no meio da “selva" com o pouco que está disponível. Descobri surpreendida que o campo tinha vários cafés, restaurantes, uma impressionante igreja etíope e até uma biblioteca. 


Igreja ortodoxa etíope
No meu primeiro dia no campo senti um clima tenso, pairava a preocupação porque as autoridades de Calais levaram alguns dos refugiados a tribunal para fechar e destruir as lojas e restaurantes improvisados, criados para responder às necessidades de alimentar os milhares de residentes no campo. Foi com alívio e alegria que soubemos da decisão do tribunal francês de rejeitar os pedidos de demolição, e manter as lojas que servem refeições, bebidas e abrigo aos residentes. 

Organizações humanitárias como a Help Refugees estimam que cerca de 9 mil pessoas vivem no campo, a maioria do Sudão, Afeganistão, Síria e Iraque. As lojas, que para a presidente da câmara de Calais deviam ser demolidas por representarem "economias paralelas que não pagam impostos", são fundamentais para alimentar os números crescentes de moradores no campo, e dar abrigo e refeições aos que necessitam. As lojas e restaurantes que os engenhosos moradores abriram vendem refeições, chá, produtos de higiene, e são importantes espaços de convívio.

"Não somos perigosos, estamos em perigo", diz um dos muitos cartazes feitos pelos moradores e espalhados pelo campo. "Ser negro não é um crime", diz outro. Ser de um país em conflito também não. 

sexta-feira, 22 de julho de 2016

"Afinal, quem fala hoje da aniquilação dos arménios?"

Cheguei à Arménia vinda da Geórgia, e apesar de apenas algumas horas ligarem as capitais dos dois países, a viagem por estradas montanhasas levou-me a um país com uma cultura, língua, e até um alfabeto completamente diferentes. 

Yerevan, a capital arménia, é uma cidade rosa. Um passeio pelo centro da cidade, onde avenidas recentemente construídas estão cheias de lojas de marca e restaurantes gourmet, com os seus edifícios de pedra vulcânica em vários tons de rosa, encontram-se poucos vestígios da história negra que marca o país.


Yerevan, cidade rosa

"Afinal, quem se lembra hoje da aniquilação dos arménios?", perguntou Adolf Hitler num discurso feito em 1939, pouco antes de começar o extermínio sistemático dos judeus europeus, que veio a ser conhecido como genocídio. O Holocausto foi reconhecido por quase todo o mundo, negá-lo é um crime em vários países, mas a perseguição e o extermínio de cerca de um milhão e meio de arménios pelo império otomano só é oficialmente reconhecido por alguns, e continua a ser negado pela Turquia.

Entre 1915 e 1922, líderes do governo turco levaram a cabo uma campanha de extermínio,  violação, deportação e pilhagem contra a minoria arménia no Império Otomano. Numa primeira fase, as populações arménias foram massacradas e o seu património pilhado e destruído, com aldeias e vilas inteiras a serem apagadas do mapa. Depois da execução de rapazes e homens, seguiu-se a deportação de mulheres, crianças e idosos em marchas de morte até ao deserto sírio.



No Museu do Genocídio Arménio 

"Violações e espancamentos eram comuns. Os que não eram imediatamente morto eram levados pelas montanhas e desertos sem comida, bebida ou abrigo. Centenas de milhares de arménios eventualmente sucumbiram ou foram mortos", escreve o historiador David Fromkin num livro sobre a queda do Império Otomano.

Para marcar os 100 anos dos massacre, a Arménia escolheu a flor não-me-esqueças como símbolo do genocídio que o resto do mundo parece ter esquecido. 


Não-me-esqueças - a flor símbolo do genocídio arménio

Mesmo Israel, que prometeu "nunca esquecer" o Holocausto, é um dos muitos estados que não reconhece o genocídio arménio, apesar de ter uma população de cidadãos arménios descendentes de sobreviventes do genocídio a viver em Jerusalém, onde há um bairro arménio dentro das muralhas da cidade antiga. Os cidadãos arménios de Israel vêem com amargura a memória selectiva do governo israelita.

Na Turquia, a negação é sistemática. O que aconteceu em 1915 é diluído no contexto da guerra, e o termo genocídio é sistematicamente negado. As conclusões dos historiadores são rejeitadas, e questionar sequer o que aconteceu com a população arménia pode levar a penas de prisão. Em 2005, o escritor Orhan Pamuk foi levado a tribunal por ter referido o extermínio dos arménios numa entrevista a um jornal suiço. 



Mosteiro arménio
Falar do genocídio arménio seria questionar os mitos nacionais da fundação da Turquia, e enfrentar uma história negra de limpeza étnica e violência. Seria questionar os símbolos nacionais, o processo de "turquificação" que apagou o passado multiétnico e multicultural da Anatolia.

Para os arménios, a memória da perda e o trauma do genocídio tornaram-se parte integrante da identidade nacional. Não-me-esqueças, diz a flor que se encontra por todo o país.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Geórgia: um alfabeto de pássaros e uma revolução de flores

De um lado a costa do mar Negro, do outro montanhas verdes envoltas em nevoeiro, na estrada que liga o norte da Turquia à Geórgia. As montanhas continuam ao longo da estrada que atravessa a Geórgia até chegar a Tbilisi, a capital deste país que não fica bem na Europa nem na Ásia, mas no cruzamento este-oeste.



Apesar de ser maioritariamente cristã-ortodoxa, a cidade acolhe a diversidade étnica e religiosa, e no centro histórico a sinagoga fica ao lado da mesquita, num país que tem uma das mais antigas comunidades judaicas do mundo, e uma mesquita onde sunitas e xiitas rezam juntos. 

"Na Geórgia, não queremos saber se és sunita ou xiita, é a mesma religião. Se vens para rezar és bem-vindo, esta é uma casa de deus, uma casa para toda a gente", diz-me Rafid Radih, um professor islâmico iraquiano, a ensinar na mesquita de Tbilisi há quase 10 anos. "Queremos ter sinagogas e igrejas na vizinhança, aceitamos toda a gente". 



Rafid mostra-me a mesquita centenária com orgulho. Mostra-me um alcorão de 400 anos, e a biblioteca onde o livro islâmico foi traduzido em seis línguas diferentes. Enquanto caminhamos silenciosos, com os pés descalços a roçar os tapetes macios, um grupo de homens reza, e só a diferença nos gestos denuncia a pertença a sectos diferentes. Um livro de Kafka foi deixado num canto de um tapete, e um homem deitado descança do calor do início de verão. As portas da mesquita estão sempre abertas.

Em deambulações pela cidade, o que mais me deslumbra não é a mistura de estilos arquitectónicos, do neoclássico e art nouveau ao soviético brutalista, ou as varandas pitorescas do centro histórico, mas os sinais e cartazes com o alfabeto georgiano. Os georgianos utilizam um alfabeto único, inventado no século V, e todas as letras me parecem pássaros: cisnes, beija-flores em voo, gaivotas a bater as asas.



Descobri que, como Portugal, a Geórgia também teve uma revolução com flores, mas em vez de cravos usou rosas para derrubar um governo autoritário e corrupto. Em 2003, eleições consideradas fraudulentas reelegeram Edvard Shevardnadze como presidente, despertando protestos por todo o país.

Durante semanas, milhares participaram em protestos pacíficos para exigir a demissão do presidente, considerado ilegítimo, e novas eleições. As forças militares reunidas para controlar a multidão foram recebidas com flores e abraços, enquanto protestantes tocavam música e dançavam na principal praça de Tbilisi. No dia 22 de Novembro protestantes invadiram o parlamento com rosas. Shevardnadze anunciou a sua demissão pouco depois. 

quarta-feira, 29 de junho de 2016

"Podes deitar-te nos meus olhos"

"Não temos muito espaço aqui em casa", diz uma mulher síria de Alepo, que se esforça por receber meia dúzia de convidados na sua casa em Basmane, no bairro sírio de Izmir. Espremidos na pequena divisão que é quarto, sala de estar e de jantar, somos recebidos com uma hospitalidade enternecedora. Não há espaço, mas há sempre espaço. "Podes deitar-te nos meus olhos", diz com um sorriso triste.

Em Basmane a habitação é precária, mas é difícil para qualquer família síria alugar um apartamento noutro bairro de Izmir. Só em Basmane, um labirinto de ruas estreitas e íngremes que se estendem até uma fortaleza no ponto mais alto da cidade, apartamentos decrépitos são alugados a um preço que as famílias sírias conseguem pagar.



A humidade e as paredes de tinta lascada, as infiltrações de água e os buracos por onde passam ratos não são a maior preocupação. As preocupações passam mais pelas más notícias da Síria, os familiares desaparecidos, a resposta dos pedidos de asilo, a possibilidade de serem despedidos no dia seguinte sem qualquer razão, ou de não receberem salário. Forçados a trabalhar ilegalmente, os refugiados sírios vivem em situações de grande vulnerabilidade.

A Turquia nega a refugiados não-europeus a possibilidade de integração permanente no país, integrando os refugiados sírios num regime de "protecção temporária", que lhes permite aceder a alguns direitos e serviços básicos, mas a maioria vive num estado de insegurança.

A "protecção temporária" responde às necessidades imediatas de protecção dos que fogem da guerra, mas mantém a grande maioria de refugiados numa situação de grande vulnerabilidade, sem apoio do governo e com muitas dificuldades em conseguir o direito de trabalhar. 



Só os refugiados que são alojados em campos de refugiados recebem um pequeno subsídio do governo turco, mas a esmagadora maioria dos refugiados vive em cidades onde trabalham ilegalmente por salários miseráveis, e onde pagar a renda de quartos minúsculos já é uma luta diária. 

Mas apesar das dificuldades em sobreviver nas cidades turcas, e alimentar famílias numerosas com salários de 200 euros por mês, muitos preferem a pobreza urbana à prisão dos campos de refugiados. "Não queremos viver da ajuda do estado", diz-me um pai de seis crianças que recolhe plástico do lixo para vender para reciclagem. "Só queremos uma vida normal", diz.



Com as vidas interrompidas pela guerra, a muitos só resta aguardar um retorno à normalidade, e sonhar com um regresso à Síria. Como uma avó de Alepo, que apesar de paralisada do lado direito por um AVC e sem acesso a serviços de saúde na Turquia, pega numa caneta para desenhar um mapa da Síria com a mão esquerda. Desenha uma Síria inteira, num só traço, sem territórios divididos por ditaduras, tensões sectárias ou fundamentalismos.

"Quando voltarmos vamos fazer da Síria o melhor país do mundo", diz. 

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Smyrna - Síria : sobre ver cidades arder

Ao caminhar pelas ruas de Basmane, o bairro de Izmir que hoje alberga milhares de refugiados sírios, ouço turco, árabe e curdo. Três línguas e dois alfabetos diferentes, que relembram que Izmir, outrora um dos principais centros mercantis do Império Otomano, foi uma cidade multicultural, onde turcos, gregos, arménios e judeus coexistiram durante séculos. 

A cidade costeira de Izmir era conhecida como 'Smyrna'
Apesar de ter sido entrege à Grécia no final da Primeira Guerra Mundial com a derrota do Império Otomano, Smyrna, como antes era conhecida a cidade, foi recapturada pelo exército turco a 9 de Setembro de 1922. Quatro dias depois a cidade foi consumida pelas chamas de um incêndio que destruiu os bairros gregos e arménios, e que levou milhares dos seus habitantes para o cais, onde refugiados desesperados foram mortos, violados e roubados pelo exército e milícias turcas.

Durante o fogo de Smyrna, cerca de 100 mil pessoas morreram, enquanto navios ocidentais ancorados no porto assistiam à cidade em chamas sem fazer nada.


"O mais estranho era a maneira como eles gritavam todas as noites à meia-noite. Eu não sei porque é que eles gritavam a essa hora. Nós estávamos no porto e eles estavam todos no paredão e à meia-noite começavam a gritar", escreveu Ernest Hemingway num conto chamado "A doca de Smyrna". No conto, baseado no que de facto aconteceu na cidade em 1922, marinheiros ocidentais ancorados no porto assistem ao massacre de refugiados gregos e arménios que procuraram abrigo no cais sem fazer nada. "O pior eram as mulheres com bebés mortos. Não desistiam deles. Podiam ter bebés mortos há seis dias. Não desistiam deles."

O cenário soa estranhamente familiar hoje. Enquanto corpos de crianças sírias aparecem na costa do Mediterrâneo e milhares de refugiados desesperados estão presos nas fronteiras, a Europa constrói fortalezas e assiste de longe às chamas. 'Nós' estamos no porto seguros, 'eles' estão no paredão desesperados, entre as chamas das cidades que ardem e as ondas que engolem os que tentam fugir. A Smyrna de há um século atrás não é muito diferente das cidades que ardem hoje na Síria.


O porto de Izmir na actualidade
Pouco resta da Smyrna multicultural, que viu a sua diversidade extinta no processo de "turquificação" que lhe mudou o nome para Izmir. Smyrna não cabia não projecto nacionalista de uma "Turquia para os turcos", por isso a cidade foi "purificada" da sua diversidade religiosa e cultural pelas chamas. 


segunda-feira, 13 de junho de 2016

A infância é curta demais em Basmane

Ao longo das semanas que passei a visitar famílias de refugiados sírios a viver na cidade turca de Izmir, tive que me adaptar a uma nova noção de idade. Envelhece-se mais rápido em Basmane, o bairro que concentra as famílias sírias. Aos 50 anos, dizem aos homens que são velhos de mais para trabalhar.

Crianças e adolescentes arranjam mais facilmente trabalho, estão na idade certa para serem explorados. Segundo dados da Unicef, metade dos refugiados sírios na Turquia são crianças, e 80% não vai à escola. Uma grande maioria trabalha por salários miseráveis, e carrega a responsabilidade de sustentar a família. 

Uma menina síria experimenta sapatos doados a famílias de refugiados em Izmir

Só em Janeiro deste ano é que o governo turco introduziu a possibilidade de adquirir autorizações de trabalho para os quase 3 milhões de refugiados sírios no país. Mas até agora menos de 0,1% conseguiu candidatar-se às licenças de trabalho.

"Todas as pessoas que entrevistamos estão a trabalhar ilegalmente," diz-me  Dilan Taşdemir, membro da organização Halklarin Koprusu, que tem trabalhado com refugiados desde que a Turquia se tornou num dos principais destinos os sírios que fogem da guerra. Segundo Dilan, que conduziu um estudo com mais de 100 pessoas a viver na área de Basmane, a grande maioria dos sírios ganha menos que o salário mínimo turco (cerca de 1600 liras, ou 485 euros), e 30% das crianças em idade escolar está a trabalhar.

Um brinquedo abandonado nas ruas de Basmane
Como a licença de trabalho depende de um contrato que deve ser antes assinado pelo empregador, muitos preferem ter sírios a trabalhar ilegalmente, sem ter que lhes pagar o salário mínimo. Os sírios trabalham 12 horas por dia, seis dias por semana, para ganhar entre 500 a 1000 liras (150 a 300 euros), salários que por vezes têm que sustentar famílias com 6 ou 7 membros.

Numa situação de vulnerabilidade, sem nenhuma segurança ou direitos garantidos, muitos têm que se sujeitar à exploração, e alguns chegam a não ser sequer pagos. Conheci demasiadas famílias que trabalharam durante meses em quintas no sul da Turquia, ou em fábricas e restaurantes, e que nunca chegaram a receber nada pelo trabalho. 

Enquanto estava sentada à porta da escola para crianças sírias criada pela organização Revi, um rapaz pára à minha frente e diz que gostava muito da escola, mas agora precisa de trabalhar para ajudar a família e já não pode ir. Tem 11 anos. A infância é demasiado curta em Basmane. 

Uma aula de artes na escola Revi

domingo, 29 de maio de 2016

Em Basmane, Izmir

Cheguei a Izmir em Maio, dois meses depois do acordo entre a União Europeia e a Turquia ter fechado a rota do Egeu aos refugiados que tentavam entrar na Europa.

Izmir, um importante porto do mar Egeu, foi um dos principais pontos de travessia da Turquia para a Europa. Só no ano passado, cerca de 850 mil pessoas atravessaram o Egeu a partir da costa turca. A grande maioria passou por Izmir, um dos principais centros de negócio de tráfico de migrantes para as ilhas gregas, agora estagnado com o fechar das fronteiras e as ameaças de deportação.


Quando cheguei, já eram escassos os coletes salva-vidas que se antes se vendiam demasiado baratos em Basmane, o distrito onde se centrava o tráfico pelas águas entre a Turquia e a Grécia. Encontrei uma Basmane com restaurantes e barbeiro sírios, com anúncios em árabe. Uma Basmane que cresce em bairro de lata, com os seus becos, ruas estreitas e íngremes, com edifícios decrépitos e gatos escanzelados, onde famílias sírias se debatem para pagar a renda dos quartos que alugam em moradias precárias. 

Com a organização de voluntários Revi  fui conhecendo as famílias sírias que escolheram ficar em Izmir, e os seus incríveis esforços para recomeçar vidas estilhaçadas por uma guerra demasiado longa e devastadora. Recebida com uma hospitalidade enternecedora, sempre com chávenas de chá doce ou café com cardamomo, fui ouvindo histórias de perda, de deslocamento, da catástrofe da guerra.


Alguns mostraram-me fotografias das suas casas em ruínas nos subúrbios de Alepo, outros fotografias dos irmãos desaparecidos, de familiares espalhados pelo mundo, e dos falecidos. Outros falaram-me dos estudos por acabar, dos empregos deixados para trás, de infâncias perdidas. 

Aos doze anos, meninos sírios trabalham doze horas por dia, seis dias por semana, carregando a responsabilidade de sustentar as famílias. Na Turquia há cerca de três milhões de refugiados sírios, e quase metade são crianças. Alguns foram colocados em campos de refugiados, mas a esmagadora maioria vive em cidades, onde são demasiado frequentes as situações de pobreza e exploração, já que refugiados sírios têm direitos muito limitados.


A extensão da perda é incalculável. Perde-se a infância, perde-se a família, perde-se a casa, perde-se um país inteiro, e o resto do mundo fica a ver alheado, preocupado apenas em manter a desgraça fora das suas fronteiras.

E ao contrário do que dizem os que usam o medo e o ódio para ganhar eleições ou manter privilégios, a maioria dos refugiados não quer viver de subsídios. Só quer uma vida normal como a que a que muitos têm como garantida. Uma vida com o direito a trabalhar e a estudar, com uma casa segura onde criar uma família. Uma vida em que meninos de doze anos possam ser só meninos de doze anos. 

domingo, 15 de maio de 2016

O que fica para trás

"Pára! Deixaste alguma coisa para trás?", pergunta-me um aviso colocado à porta de saída de um autocarro israelita.

Sim, deixei cidades que amava, e lugares a que chamei casa, e pessoas que fizeram parte da minha vida.
Sinal num autocarro israelita
Deixei parques onde costumava ir, e a sombra de árvores onde me sentava a ler. Deixei os meus cafés favoritos, aquele sítio onde se ouvia a melhor música, e aquele onde um gato se vinha deitar no meu colo. Deixei telhados onde bebia chás iluminados pelas estrelas.

Deixei bicicletas estimadas, com nomes cuidadosamente escolhidos. Deixei um vestido de renda branco. Deixei as luzes acesas no Danúbio, e os últimos raios de sol numa lagoa escura.

Deixei os salgueiros a chorar no Miljacka e as montanhas de Sarajevo, com os seus cemitérios de lápides brancas.

Deixei o jasmim das ruas de Ramallah, o café com cardamomo, e o muezzin desafinado que me acordava todos os dias. Deixei sementes de cravos.


Elizabeth Bishop diz que a perda não é difícil de aprender. Deixa para trás alguma coisa todos os dias, recomenda. Mas sempre que deixo uma cidade que foi minha, ainda que apenas por alguns meses, a perda dói. E sinto que me deixo a mim mesma para trás, com tudo o que me faz falta.

Mas enquanto deixo a Terra Santa, a minha Ramallah cacofónia e Jerusalém de muros de pedra, preparo-me para encontrar na Turquia os que deixaram tudo para trás, fugidos de uma guerra demasiado longa e devastadora. Cinco anos depois do início da guerra na Síria, as fatalidades chegam aos 400 mil, e cerca de 4 milhões de refugiados. 

Na Turquia há mais de 2 milhões de refugiados sírios. Muitos deixam a Síria apenas com uma mochila às costas. Tudo fica para trás. A perda é indescritível. 

Não sei porque nasci com o privilégio de poder escolher as minhas perdas. Eu posso deixar Jerusalém, mas os meus amigos palestinianos não podem sequer visitar a cidade sagrada. Eu posso deixar a Turquia quando quiser, mas milhares de pessoas desesperadas estão presas nas fronteiras sem poder entrar na Europa. Privilégio é poder escolher o que fica para trás. 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Semear cravos na Terra Santa

Um dia, quando voltava para casa cabisbaixa, depois de passar horas a ler sobre demolições de casas, apropriação de terras, e ataques com facas (em suma, um dia normal na Cisjordânia), vi um cravo vermelho no chão. Um cravo vermelho solitário, na calçada de cimento das ruas de Ramallah.

Já tinha visto cravos à venda nos mercados de Israel, mas nunca esperei encontrar um cravo vermelho, igual aos cravos de Abril, abandonado na calçada, entre beatas de cigarro.


Um cravo vermelho em Ramallah
Esse cravo deu-me esperança, e uma missão: plantar cravos pela Palestina e Israel, fazer da jardinagem a minha guerrilha pacífica.

Quando falo a estrangeiros de Portugal, falo sempre com orgulho do 25 de Abril, das armas com cravos vermelhos, especialmente aqui, onde as armas são uma presença constante. Armas de puro aço, sem qualquer pétala, qualquer traço de delicadeza. Armas a controlar o movimento dos checkpoints, armas que se sentam ao meu lado no comboio. Armas que ameaçam estar prontas a disparar, armas que apontam para pedestres no coração da cidade.

Tento explicar aos meus amigos palestinianos e israelitas o significado de um cravo vermelho, na história de um país que viveu décadas de ditadura. Tento explicar como esse cravo vermelho, cravado em metralhadoras ou lapelas militares, passou a simbolizar liberdade, democracia, e uma revolução pacífica.
Uma granada de atordoamento transformada em jarra
Tento insistir na necessidade de uma revolução pacífica, aqui, onde jovens com facas de cozinha têm morrido às centenas nos últimos meses, em nome da “liberdade para a Palestina”.  Aqui, onde adolescentes são “neutralizados” ou “martirizados”, conforme a narrativa. "A pátria não vale nem uma criança", disse um pai palestiniano em luto. Para uns, o pai de um terrorista, para outros o pai de um herói.

Encurralada no meio das duas narrativas, dividida entre dois mundos aparentemente irreconciliáveis, onde a “independência” de uns é a "catástrofe" de outros, eu decidi plantar cravos.

O que começou com a meia dúzia de sementes que colhi do cravo que encontrei na rua, desenvolveu-se num projecto de centenas de sementes espalhadas por várias cidades diferentes. graças à ajuda de amigos, e de outros portadores de sementes, como o homem palestiniano que preparava o seu jardim para  a Primavera, e que recebeu com um sorriso a minha mão cheia de sementes; ou a menina etíope cheia de curiosidade, que primeiro tentou comer as minhas sementes, mas depois me ajudou a espalhá-las.



Amigos palestinianos, israelitas, e todos os outros: se virem cravos a crescer na Terra Santa, guardem as sementes e espalhem-nas.  O mundo precisa de mais cravos vermelhos.

quinta-feira, 17 de março de 2016

No deserto do Negev

Na minha viagem até ao deserto do Negev, no sul de Israel, não tive tempo para visitar as atracções que os guias turísticos apontam como imperdíveis. Não visitei as impressionantes crateras vulcânicas, nem as minas do rei Salomão, nem as ruínas romanas e bizantinas. Interessei-me mais pelas ruínas por acontecer: a demolição de aldeias e o deslocamento das comunidades beduínas que lá vivem.

Em Umm al-Hiran, uma menina beduína sentada no chão da sua aldeia brincava com terra, a terra que em breve terá de deixar. Todos os habitantes da aldeia receberam ordens de despejo e de demolição das suas casas, para que uma vila judaica seja construída nas ruínas.

Em Umm al-Hiran uma menina brinca com a terra que vai ter que deixar

“Não se pode tirar uma pessoa do seu lugar para trazer outra pessoa,” diz Ahmad Abu Qian, residente em Umm al-Hiran. “Não posso aceitar isto. Há tanto espaço no deserto!”, exclama. Os beduínos têm cidadania israelita e compõem cerca de um terço dos habitantes do deserto de Negev, mas as suas aldeias ocupam menos de 3% da área, e apenas algumas são reconhecidas pelo governo.

Localizada a 20 quilómetros de Be’er Sheva, a maior cidade do Negev, Umm al-Hiran é habitada por cerca de 500 membros da tribo beduína al-Qian. A aldeia foi estabelecida em 1956 por ordens militares, depois da comunidade beduína ter sido expulsa das suas terras com a criação do estado de Israel.  

Ahmad senta-se junto da mesquita da aldeia e conta a história da sua tribo, que chegou ao Negev no século XIX. Quando foram transferidos para Umm al-Hiran por ordens militares nos anos 50, não tinham nenhuma fonte de água. “Seis homens iam com camelos e ovelhas buscar água de manhã, e voltavam ao anoitecer”, conta. O acesso mais próximo ficava a quase 20 quilómetros de distância.

Hoje, Umm al-Hiran ainda não tem água canalizada (os pedidos da aldeia para serem ligados aos canos de água mais próximos foram rejeitados), electricidade ou serviços de saúde. Tal como as cerca de 40 outras aldeias beduínas não reconhecidas pelo governo israelita, e por isso consideradas “ilegais”, a aldeia não recebe os serviços mais básicos. A água vem em tanques da cidade mais próxima, e os residentes da aldeia usam painéis solares para terem energia. 

Um cartaz anuncia a construção da vila judaica
 “Se Israel fosse uma democracia não tratava assim os seus cidadãos”, diz Ahmad. Ele aponta para uma quinta próxima da aldeia, onde vive uma família judaica que, ao contrário das centenas de famílias beduínas que vivem nas proximidades há décadas, recebe água, electricidade e serviços de saúde fornecidos pelo governo.

Os planos para a construção da vila destinada a ser habitada por famílias judaicas estão a ser discutidos há mais de uma década, marcada por uma longa batalha legal pelos direitos dos residentes beduínos. Mas Umm al-Hiran só começou a ganhar atenção pública recentemente, quando uma petição lançada pelos residentes da aldeia foi rejeitada pelo supremo tribunal israelita, que reconheceu que a comunidade estava a viver na aldeia com a permissão do estado, mas declarou que as terras pertenciam ao estado e por isso os residentes não tinham quaisquer direitos legais sobre elas.

Sentei-me com Ahmad junto à mesquita, a beber café árabe e a ouvir as suas histórias. Connosco sentava-se um grupo variado: jovens activistas israelitas juntavam-se a velhos jornalistas, a políticos europeus e a turistas curiosos. O que os unia era a visita à aldeia em solidariedade com a causa beduína.

“Olho para estas oliveiras e penso que as árvores demoram muito tempo a dar azeitonas. Espero que os beduínos possam provar estas azeitonas e desfrutar dos frutos do seu trabalho”, diz Wolfgang, um político alemão em visita. 

Mas junto às oliveiras dos vales que rodeiam a aldeia já estão bulldozers estacionados, como ameaças do despejo iminente. Na semana anterior, campos agrícolas foram destruídos, e o terreno começou a ser preparado para construção.
Ahmad aponta o lugar onde terrenos cultivados já começaram a ser destruídos
A única opção dada aos residentes é mudarem-se para Hura, uma cidade planeada para beduínos. Muitos dos beduínos que vivem em aldeias não reconhecidas são forçados a mudar-se para povoações urbanas como Hura. O governo israelita fala dos benefícios do alojamento permanente das cidades e dos serviços públicos, usando o argumento do “desenvolvimento”.

Mas a verdade é que poucos querem mudar-se para as zonas urbanas sobrelotadas e empobrecidas planeadas para beduínos, e abdicar do estilo de vida pastoral e agrícola tradicional entre as comunidades beduínos. Muitos sentem que são forçados à sedentarização, e concentrados em cidades pobres onde há elevadas taxas de desemprego e criminalidade.

“As povoações planeadas para beduínos são como guetos”, diz-me Rafat, um activista beduíno e estudante de direito. Rafat diz-me que a desigualdade e a discriminação são persistentes. Diz-me que, se quisesse arranjar trabalho num restaurante em Be’er Sheva, por exemplo, o mais provável era que fosse rejeitado por ser beduíno. Com sorte, punham-no a trabalhar na cozinha, onde estaria longe do olhar dos clientes judeus israelitas.

Para os habitantes de Umm al-Hiran mudar-se para a cidade não é uma opção
Mais tarde conheci Aziz, residente na aldeia não reconhecida de al-Araqib. Aziz comparou as povoações planeadas para beduínos a campos de refugiados. “Forçam-nos a deixar as nossas aldeias e a ir para esses campos cheios de desemprego e pobreza. Ficam com as nossas terras, e acabamos a viver em cidades pobres e a trabalhar em quintas judaicas. Querem-nos como servos, como subordinados”.  

Mas Aziz recusa a subordinação. Apesar da sua aldeia já ter sido destruída dezenas de vezes, insiste em permanecer na terra que considera sua.