domingo, 15 de maio de 2016

O que fica para trás

"Pára! Deixaste alguma coisa para trás?", pergunta-me um aviso colocado à porta de saída de um autocarro israelita.

Sim, deixei cidades que amava, e lugares a que chamei casa, e pessoas que fizeram parte da minha vida.
Sinal num autocarro israelita
Deixei parques onde costumava ir, e a sombra de árvores onde me sentava a ler. Deixei os meus cafés favoritos, aquele sítio onde se ouvia a melhor música, e aquele onde um gato se vinha deitar no meu colo. Deixei telhados onde bebia chás iluminados pelas estrelas.

Deixei bicicletas estimadas, com nomes cuidadosamente escolhidos. Deixei um vestido de renda branco. Deixei as luzes acesas no Danúbio, e os últimos raios de sol numa lagoa escura.

Deixei os salgueiros a chorar no Miljacka e as montanhas de Sarajevo, com os seus cemitérios de lápides brancas.

Deixei o jasmim das ruas de Ramallah, o café com cardamomo, e o muezzin desafinado que me acordava todos os dias. Deixei sementes de cravos.


Elizabeth Bishop diz que a perda não é difícil de aprender. Deixa para trás alguma coisa todos os dias, recomenda. Mas sempre que deixo uma cidade que foi minha, ainda que apenas por alguns meses, a perda dói. E sinto que me deixo a mim mesma para trás, com tudo o que me faz falta.

Mas enquanto deixo a Terra Santa, a minha Ramallah cacofónia e Jerusalém de muros de pedra, preparo-me para encontrar na Turquia os que deixaram tudo para trás, fugidos de uma guerra demasiado longa e devastadora. Cinco anos depois do início da guerra na Síria, as fatalidades chegam aos 400 mil, e cerca de 4 milhões de refugiados. 

Na Turquia há mais de 2 milhões de refugiados sírios. Muitos deixam a Síria apenas com uma mochila às costas. Tudo fica para trás. A perda é indescritível. 

Não sei porque nasci com o privilégio de poder escolher as minhas perdas. Eu posso deixar Jerusalém, mas os meus amigos palestinianos não podem sequer visitar a cidade sagrada. Eu posso deixar a Turquia quando quiser, mas milhares de pessoas desesperadas estão presas nas fronteiras sem poder entrar na Europa. Privilégio é poder escolher o que fica para trás. 

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