quarta-feira, 22 de junho de 2016

Smyrna - Síria : sobre ver cidades arder

Ao caminhar pelas ruas de Basmane, o bairro de Izmir que hoje alberga milhares de refugiados sírios, ouço turco, árabe e curdo. Três línguas e dois alfabetos diferentes, que relembram que Izmir, outrora um dos principais centros mercantis do Império Otomano, foi uma cidade multicultural, onde turcos, gregos, arménios e judeus coexistiram durante séculos. 

A cidade costeira de Izmir era conhecida como 'Smyrna'
Apesar de ter sido entrege à Grécia no final da Primeira Guerra Mundial com a derrota do Império Otomano, Smyrna, como antes era conhecida a cidade, foi recapturada pelo exército turco a 9 de Setembro de 1922. Quatro dias depois a cidade foi consumida pelas chamas de um incêndio que destruiu os bairros gregos e arménios, e que levou milhares dos seus habitantes para o cais, onde refugiados desesperados foram mortos, violados e roubados pelo exército e milícias turcas.

Durante o fogo de Smyrna, cerca de 100 mil pessoas morreram, enquanto navios ocidentais ancorados no porto assistiam à cidade em chamas sem fazer nada.


"O mais estranho era a maneira como eles gritavam todas as noites à meia-noite. Eu não sei porque é que eles gritavam a essa hora. Nós estávamos no porto e eles estavam todos no paredão e à meia-noite começavam a gritar", escreveu Ernest Hemingway num conto chamado "A doca de Smyrna". No conto, baseado no que de facto aconteceu na cidade em 1922, marinheiros ocidentais ancorados no porto assistem ao massacre de refugiados gregos e arménios que procuraram abrigo no cais sem fazer nada. "O pior eram as mulheres com bebés mortos. Não desistiam deles. Podiam ter bebés mortos há seis dias. Não desistiam deles."

O cenário soa estranhamente familiar hoje. Enquanto corpos de crianças sírias aparecem na costa do Mediterrâneo e milhares de refugiados desesperados estão presos nas fronteiras, a Europa constrói fortalezas e assiste de longe às chamas. 'Nós' estamos no porto seguros, 'eles' estão no paredão desesperados, entre as chamas das cidades que ardem e as ondas que engolem os que tentam fugir. A Smyrna de há um século atrás não é muito diferente das cidades que ardem hoje na Síria.


O porto de Izmir na actualidade
Pouco resta da Smyrna multicultural, que viu a sua diversidade extinta no processo de "turquificação" que lhe mudou o nome para Izmir. Smyrna não cabia não projecto nacionalista de uma "Turquia para os turcos", por isso a cidade foi "purificada" da sua diversidade religiosa e cultural pelas chamas. 


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