segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Deixar Hebron

"A vida na Palestina não é vida", diz-me Abu Rami, enquanto olhamos da janela para os blocos de cimento que soldados israelitas colocam na estrada para limitar o acesso à cidade de Hebron. No dia anterior, Abu Rami esperou quase duas horas no checkpoint, a apenas alguns metros de sua casa, depois de ter ido buscar a filha à escola.

"É exército, ocupação, soldados armados, ruas cortadas... não é vida", ele suspira.


Blocos de cimento bloqueiam a estrada em Hebron
A vida na Palestina não é vida, e a vida que é vale tão pouco... Nesse mesmo dia duas adolescentes palestinianas tinham sido abatidas como se fossem cães com raiva depois de terem tentado um ataque com tesouras em Jerusalém. Uma tinha 16, a outra 14 anos. Já estavam no chão, imobilizadas, mas o polícia fez questão de disparar. A câmara de segurança capturou o desprezo pela vida humana que se tornou tão banal. Porque aqui, matar adolescentes com tesouras é normal. É necessário para conter a onda de terror, dizem as autoridades israelitas. 

Desde Outubro, morreram mais de 100 palestinianos, alguns em ataques (efectivos e alegados) contra soldados israelitas e civis, outros em manifestações e confrontos com o exército. No mesmo período morreram 17 israelitas. Quase todos os atacantes eram adolescentes ou jovens, e grande parte vinha de Hebron. A cidade tem sido o principal palco de violência nos últimos meses.

"Precisamos mais do que observadores internacionais", diz-me Muafaq. Conhecemos-nos na demonstração semanal no centro da cidade, onde jovens palestinianos protestam contra a ocupação. Muafaq diz-me que organizações como a TIPH, observadores internacionais, não são suficientes para controlar a situação na cidade antiga e proteger as famílias que lá vivem.


A loja de um activista de direitos humanos
Saí de Hebron envergonhada, porque eu posso simplesmente sair, posso passar os checkpoints com um "shalom". Posso cansar-me dos soldados, dos protestos de sexta-feira cheios de gás lacrimogéneo e ambulâncias, das notícias diárias de violência e das ruas cortadas. Posso cansar-me e simplesmente sair, deixar a cidade, mas os que ficam têm que lidar com tudo isso diariamente. 

Quem vive em Hebron já está habituado a que partam: os activistas de férias, os observadores internacionais, as organizações de direitos humanos, os jornalistas. Ficam alguns dias, umas semanas, no máximo alguns meses, e depois deixam a cidade. "Todos deixam Hebron, mas é muito mais perigoso para nós do que para vocês", disseram-me. Parti sem conseguir deixar de me sentir culpada, por deixar os que me receberam como família, e por ter o privilégio de poder simplesmente partir.

Deixar a mesquita de Ibrahim, no centro de Hebron

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O medo tornado hábito

Hoje escrevo porque não posso sair de casa: é sexta-feira, dia de protestos em Hebron, no sul da Palestina, e o exército fechou a rua que dá acesso ao lugar onde estou a trabalhar e a viver. Enquanto escrevo, ouço lá fora o barulho de explosões e ambulâncias, e vejo nuvens de gás lacrimogéneo. Na semana passada, fiquei presa do outro lado, sem poder voltar a casa porque a minha rua se tinha tornado num campo de batalha. Fiquei no lado dos manifestantes, a ver rapazes adolescentes a atirar pedras.  

Nos últimos meses, os protestos de sexta-feira fazem parte da rotina dos habitantes de Hebron. De um lado, rapazes com keffiyeh ao pescoço atiram pedras e cocktails molotov, do outro, soldados israelitas atiram gás lacrimogéneo, bombas atordoadoras e balas de borracha. 


Granada de gás no chão da cidade antiga

Tinha acabado de chegar a Hebron quando me disseram que uma mulher de 73 anos tinha sido morta por militares no dia anterior, junto ao lugar onde ia viver. Na minha primeira semana de trabalho, um hospital no centro da cidade foi invadido por militares (um deles disfarçado de mulher grávida) que prenderam um paciente e mataram um dos seus familiares; dois colonos israelitas foram mortos por um palestiniano que disparou sobre um carro onde viajava uma família, e vários rapazes foram mortos ou ficaram gravemente feridos em confrontos com o exército. 


Grades, pedras e arame farpado fazem parte da paisagem
Aos poucos fui-me acostumando às notícias de morte, aos soldados armados nas ruas e ao clima de revolta e tensão. Fui-me acostumando à presença constante de armas no centro histórico, aos checkpoints, às pedras e granadas de gás lacrimogéneo espalhadas pelo chão. Mas na verdade, não sei como se pode viver diariamente no meio disto. Quando é que o medo e a morte se tornam hábito?

Hebron habitou-se à violência. É daqui que vêm grande parte dos agressores que têm aterrorizado israelitas nos últimos meses com esfaqueamentos nas ruas de Tel Aviv, Jerusalém e em colonatos. É aqui que palestinianos são abatidos por militares, no que várias organizações de direitos humanos consideraram um uso "intencional de força letal sem justificação". É aqui que, de cada lado, se celebram as mortes do inimigo. É aqui que cada lado se desumaniza, e que as vidas que são perdidas deixam de ser vistas como vidas humanas, para passarem a ser artilharia. 

Mas pequenos actos de resistência pacífica e palavras de tolerância ainda carregam esperança. Apesar de pensarem que eu era israelita, vários palestinianos receberam-me com "shalom" nas ruas principais de Hebron. Não acredito (ou não quero acreditar) que as pessoas estão cheias de ódio. Não estas pessoas, que vou conhecendo em deambulações pela cidade, que me convidam para tomar chá, que me sorriem, que abrem as portas das suas casas e me recebem de braços abertos. 


Numa padaria em Jaffa: "judeus e árabes recusam-se a ser inimigos"

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Hebron: "a cidade mais triste da Cisjordânia"

"Hebron é a cidade mais triste da Cisjordânia", diz Leila, enquanto bebemos chá na sua loja no centro histórico da cidade, no sul da Palestina.  A sua irmã Nawal criou o projecto Women in Hebron, uma cooperativa de mulheres que produzem peças bordadas tradicionais. "A nossa mãe ensinou-nos a bordar, é muito importante na tradição palestiniana", diz.

Leila, na sua loja no centro histórico de Hebron
Nawal começou por vender algumas peças que tinha bordado em 2005, em frente à mesquita de Ibrahim, no Túmulo dos Patriarcas, o mais importante monumento da cidade. As tensões em Hebron estão centradas neste monumento, que é sagrado tanto para muçulmanos como para judeus.

Em 2005, a situação económica nos territórios palestinianos era preocupante. Nawal começou por vender os seus bordados na rua, até lhe oferecerem um espaço no mercado antigo de Hebron, esvaziado devido às tensões na cidade. O negócio de Nawal foi crescendo, e a sua irmã tomou conta da loja, a única gerida por mulheres no mercado antigo. Outras mulheres de Hebron e aldeias vizinhas juntaram-se à associação, produzindo vestidos, carteiras e bolsas bordadas à mão. Hoje, são cerca de 150 as mulheres que fazem parte da cooperativa. 

Vestidos bordados à mão, alguns levam meses a ser feitos
"Vendemos peças feitas à mão para ajudar as famílias que vivem em Hebron", diz Leila. Mas as tensões na cidade antiga, esvaziada do movimento que outrora tinha, dificultam o negócio. "Vendemos online mas ainda não é suficiente", lamenta. No entanto, a falta de negócio não a preocupa tanto como a falta de segurança que sente diariamente. 

"Temos sempre medo", diz. Medo pelos filhos, medo dos soldados e dos colonos. "Quando os colonos vêm em visitas atiram-nos com coisas, cospem nas nossas caras, partem e destroem propriedade. Vêm com soldados para os proteger, mas ninguém protege os palestinianos. Se as nossas crianças fizerem alguma coisa são presas, mas às crianças dos colonos nunca acontece nada", desabafa. 

Na rua do mercado antigo, uma rede protege os palestinianos dos colonos que vivem nas casas em cima. Pedras, fraldas sujas, garrafas e sacos de lixo são atiradas pelos colonos, e vão-se acumulando na rede que separa os dois mundos: em baixo, o mercado colorido que vende keffiyeh, lenços e bordados palestinianos. Em cima, grandes bandeiras de Israel e soldados armados, de metralhadora em riste. Uma rede de separação, e um testemunho da humilhação diária sofrida pelos residentes e comerciantes na cidade antiga. 

Lenços palestinianos à venda no mercado e a rede com lixo
Hebron é uma cidade disputada. É considerada a segunda cidade mais sagrada para os judeus, por conter os túmulos dos patriarcas do judaísmo, mas é simultaneamente uma das cidades com a maior população palestiniana, e um centro de comércio e indústria na Cisjordânia. 

Nas últimas décadas a cidade tem sido ocupada por um número crescente de colonos israelitas que se instalam na cidade por razões religiosas. Em 1994, Baruch Goldenstein, um extremista judeu, entrou na mesquita do Túmulo dos Patriarcas armado e começou a disparar sobre os crentes que rezavam: 29 muçulmanos foram mortos, e centenas ficaram feridos. Depois do massacre, a mesquita foi dividida em duas partes, uma para os muçulmanos e outra para judeus, e as divisões e rivalidades foram acentuadas. 

Colonos israelitas alegam o seu direito de viver na cidade, mencionando uma presença judaica histórica na cidade. No início do século XX, Hebron tinha uma significativa população judaica, mas tensões entre árabes e judeus em 1929 levaram a um massacre na cidade: 67 judeus foram mortos depois de um incitamento à violência. 

Centenas de judeus foram protegidos pelos vizinhos (estima-se que mais de 400 foram salvos por famílias árabes que os esconderam nas suas casas), mas toda população judaica na cidade foi evacuada. Só após 1967 Hebron voltou a ser ocupada por judeus. Na sua maioria, colonos que se mudam para a cidade por razões religiosas. Divida em duas zonas (H1 de controlo palestiniano e  H2 de controlo israelita), na cidade centenas de colonos são protegidos pelo militares, e checkpoints espalham-se pelo centro histórico. 

"This is Palestine" mensagem apagada na parede
Organizações de direitos humanos reportam constantemente: por um lado as intimidações e agressões de colonos e soldados israelitas, por outro os ataques de palestinianos contra colonos. Entre elas, a organização israelita B'tselem, a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch

Conheci duas americanas voluntárias na organização Christian Peacemaker Teams. que me falaram do trabalho diário como observadoras internacionais. Acompanham crianças à escola para certificarem-se que não são atacadas por colonos ou soldados (o que é demasiado frequente), e dão apoio a famílias residentes no cento histórico.

"Não podemos parar as demolições de casas ou a violência, mas podemos certificar-nos que tudo isso é documentado", dizem. "O nosso trabalho pode não impedir a violência, mas pelo menos os palestinianos não estão sozinhos, e isso é muito importante", acrescentam.

Jamal nasceu no centro histórico de Hebron, onde viveu toda a sua vida. Leva-me até ao telhado de sua casa para me mostrar a vista, e os colonatos que se vão espalhando em redor. Diz-me que há uns dias, os soldados estavam a ensinar jovens colonos a usar armas num telhado próximo do seu. Diz-me que sofre quase todas as semanas com os efeitos do gás lacrimogéneo que é lançado, e com a insegurança e a tensão que se vive diariamente no bairro.

A vista do telhado de Jamal
"A minha vida está aqui. Não é uma vida boa, segura ou tranquila. Na verdade, é muito difícil, mas tenho tudo aqui e não tenho outro sítio para onde ir", diz Jamal. 

O rosto de Leila está marcado por apreensão enquando fala das suas lutas diárias. Nos últimos meses, o acentuar da violência esvaziou o mercado antigo, porque os visitantes têm medo de lá ir. "Há dias em que só consigo fazer 20 shekels (cerca de 4 euros)", diz. Mas a sua cooperativa é uma forma de resistência: com agulhas, ponto a ponto, luta para preservar a tradição palestiniana.

Carteiras à venda na cooperativa

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Israel : o mosaico desajustado

Aterrei em Tel Aviv, em Israel, "a única democracia do Médio Oriente", no início de Novembro. No controlo de passaportes, a funcionária começou um interrogatório que foi interrompido por gritos e ameaças quando ouviu a palavra "Palestina". 

Aconselharam-me a não mentir e foi o que fiz. Depois de gritarem comigo mandaram-me para uma sala onde aguardei que outro funcionário chegasse para continuar o interrogatório interrompido na fila de controlo dos passaportes. Outros viajantes sentavam-se a esperar, e um segurança estava à porta a certificar-se que nenhum de nós saía da sala. 


"Onde vais?" "O que vais fazer?" "Porquê?", continuou o interrogatório. Evitei voltar a falar da Palestina, mencionei o voluntariado com crianças em Hebron, a vontade de viajar pelo território e de trabalhar num kibbutz (este último bastante improvável). Acho que foram os kibbutz que me salvaram, e fizeram com que me dessem o visto pouco depois.

Mas passei demasiado tempo a imaginar que me deportavam, e que não iria poder entrar no território. Que só ia ver a cúpula dourada da mesquita de Jerusalém em fotografias, e imaginar como seria flutuar no mar Morto: condição a que muitos palestinianos estão condenados. A impossibilidade de pisar a terra tão sonhada, de onde as raízes foram cortadas antes de sequer nascer. 


Desenraizamento: laranjeira suspensa do artista Ran Morin (Yaffa)
Foi essa condição que primeiro me ligou a esta terra. Há três anos atrás conheci Obai em Lisboa. Obai é palestiniano, mas não tem o direito de entrar em Israel ou nos territórios palestinianos. Tal como outros milhões de palestinianos deslocados, que compõem uma das maiores populações apátrida do mundo, a sua nacionalidade é fragmentada. Foi o seu desenraizamento que me ligou a esta terra, fascinante com toda a sua história e beleza, com todas as suas contradições, injustiças e complexidades. 

Em Tel Aviv fui supreendida pela diversidade cultural de Israel. Fui com a ideia pré-fabricada do israelita descendente de judeus europeus, branco e ocidental. O que vi ao chegar foi um cenário completamente diferente. A população de Israel é multicultural e imensamente diversa. A elite israelita é liderada por judeus brancos, mas para além dos judeus descendentes de europeus, há judeus asiáticos e judeus africanos que compõe uma percentagem muito significativa da população, para não falar da população não-judaica, os 20% de árabes/palestinianos que compõe a demografia israelita.


Israel é um mosaico que não encaixa
O primeiro israelita que conheci foi Jacky, nascido em Marrocos.  Empresário de sucesso, Jacky fala hebraico, árabe e inglês, mas a sua língua materna é o francês. Israel é um dos países com a maior diversidade linguística. Para além do hebraico e do árabe que constituem as línguas oficiais, inglês, russo, francês e amárico são línguas amplamente faladas. 

Por isso vi em Israel um mosaico desajustado: um estado judeu embutido num território onde vive uma população não-judaica, e onde ser judeu adquire mil tons e significados. Basta olhar para o mapa e ver no picotado das fronteiras as peças que não encaixam.

Yaffa - a cidade antiga árabe

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Perder Sarajevo

"Viajar! Perder países! Ser outro constantemente..."

Fernando Pessoa faz com que pareça fácil. Mas perder países pode ser extremamente doloroso. Deixei Sarajevo no fim de Outubro como quem deixa um amante. Não sabia que se podia amar assim uma cidade, para além da nossa, a que chamamos casa.


Sarajevo foi a minha casa durante alguns meses. Senti-me logo acolhida, aconchegada pelas montanhas que rodeiam a cidade e a sua beleza. Adorava cada pequeno detalhe, cada parte da rotina que fui criando.

Adorava o cheiro do pão quente da padaria perto de minha casa. Adorava ir de bicicleta de manhã para o trabalho, pedalar junto ao rio que atravessa a cidade e beber café bósnio no meu sítio preferido, onde um gato vinha deitar-se no meu colo e os empregados já sabiam o meu nome. Adorava o nevoeiro nas montanhas e o som da chamada à oração dos minaretes que preenchem a linha de horizonte de Sarajevo, especialmente quando se misturava com o som de sinos das igrejas mais próximas.


Sa-ra-je-vo. Até a palavra tem algo de mágico. Pronuncio-a, e com ela a saudade dessa cidade que quis fazer minha e a dor de a perder. 

"Viajar assim é viagem,/ Mas faço-o sem ter de meuMais que o sonho da passagem.O resto é só terra e céu."

Terra e céu, enquanto esvazio a mochila da Bósnia e a preparo para a Palestina. Terra e céu, enquanto voo em direcção a Tel Aviv. 

"Não pertencer nem a mim!Ir em frente, ir a seguirA ausência de ter um fim/
E a ânsia de o conseguir!"

Aterrar em Tel Aviv