segunda-feira, 10 de julho de 2017

O Chipre e as duas Nicósias

Nunca estive numa cidade onde tivesse que andar com dois mapas: um para o sul de Nicósia, a parte grega da República do Chipre, outro para a proclamada República Turca de Chipre do Norte. Dois mapas, duas línguas, duas moedas, dois museus de “luta nacional”. Em Nicósia, duas bandeiras rivais enfrentam-se no meio do checkpoint que separa as duas partes da cidade antiga, dividida desde a invasão turca de 1974 após um golpe de estado fracassado de ultranacionalistas gregos que pretendiam unir o Chipre à Grécia. 

Bandeira grega e cipriota no sul junto à buffer-zone
“São dois países diferentes!” grita um funcionário turco no checkpoint da rua Ledra, que atravessa o centro histórico de Nicósia, exaltado com a minha tentativa de atravessar as duas partes da cidade por checkpoints diferentes. Depois de atravessar checkpoints várias vezes por dia, deixei de me surpreender com a naturalidade com que o arame farpado, as barricadas, os postos de vigia e imensos muros fazem parte da paisagem da cidade. Até o simples acto de pedir um café, que tanto pode ser chamado de café grego, turco ou cipriota (apesar de ser preparado exactamente da mesma maneira), está carregado de política. A República do Chipre, a parte grega no sul da ilha, faz parte da União Europeia, enquanto a autoproclamada República Turca de Chipre do Norte só é reconhecida pela Turquia, e conta com a presença militar de 40 mil soldados turcos.

Café junto a barreira de separação
Do lado grego da rua Ledra, senhoras bebem refrescos junto a uma barricada de sacos de areia, e na buffer-zone, controlada por capacetes azuis da ONU, vasos de plantas e flores delimitam as filas de espera para o controlo de passaportes e bilhetes de identidade. Se não fossem os cartazes das Nações Unidas, os graffitis políticos e os ocasionais oficiais com boinas azuis, quase podia pensar que estava a atravessar uma fronteira como qualquer outra. Mas no Chipre, uma ilha com pouco mais de um milhão de habitantes, as fronteiras são tudo menos típicas. Checkpoints dos dois lados não poupam as mensagens políticas e os cartazes sensacionalistas carregados com um nacionalismo agressivo. Se no lado sul vi mensagens contra os “colonos turcos” e a defender a enosis, a união com a Grécia rejeitada pelos habitantes turcos do Chipre e hoje defendida apenas por uma minoria de nacionalistas cipriotas gregos, no norte vi incontáveis bandeiras turcas e imagens de Ataturk.

Plantas numa das barreiras de separação
No checkpoint do Palácio Ledra, onde negociações para reunir a ilha têm sido repetidamente organizadas, resultando sempre em fracasso, o lado grego exibe cartazes com imagens de atrocidades cometidas por milícias turcas, enquanto no lado turco uma placa provocadora dá ao visitante as boas-vindas à “para sempre” República Turca de Chipre do Norte. Na buffer-zone entre os dois checkpoints encontrei um pequeno oásis de sanidade: a organização 'Home for Cooperation', uma associação de diálogo entre os dois lados da ilha, onde conheci Evren, um turco cipriota que me falou da situação política e das várias iniciativas que tentam criar pontes entre os dois lados. Situada no centro de Nicósia,  numa zona abandonada entre os checkpoints desde a divisão da ilha em 1974, a associação promove o diálogo e a confiança através de eventos culturais, aulas de turco e grego, e iniciativas que procuram quebrar as barreiras que dividem a comunidades grega e turca no Chipre.

Manifestantes do movimento "Unite Cyprus Now" seguram bandeiras com a palavra "paz" em grego e turco
Evren faz parte do grupo de activistas que lutam pela união do Chipre. Durante anos dedicaram-se à criação de um espaço de encontro na buffer-zone, que se tornou num dos poucos espaços onde membros das duas comunidades se podiam encontrar. Entre 2007 e 2009, o apoio das Nações Unidas e da União Europeia permitiu o financiamento da restauração de uma casa abandonada na buffer-zone desde a divisão do Chipre em 1974. “Contactámos os proprietários da casa, uma família arménia”, diz-me Evren, e depois disso foi fácil comprar e renovar a casa na zona abandonada entre as linhas que dividem o Chipre. No entanto, Evren e a sua associação representam uma minoria de cipriotas que se atreve a atravessar as barreiras que dividem o Chipre. Nicolas, um cipriota grego que conheci em Larnaca, não acredita que a união seja possível na sua geração, sublinhando as diferenças que separam um sul mais desenvolvido de um norte isolado, e os interesses de poderes internacionais que tornam um acordo de unificação improvável. 

Forças de manutenção da paz da ONU no checkpoint da rua Ledra/Lokmaci
Uma semana antes do recomeço das negociações de reunificação, que há dias António Guterres veio anunciar terem mais uma vez falhado, assisti a manifestações na buffer-zone em defesa de um acordo de reunificação. Enquanto músicos dos dois lados da ilha tocavam entre os checkpoints, bandeiras e cartazes com mensagens a pedir diálogo e cooperação dançavam a um ritmo esperançoso e contagiante. Entre as poucas dezenas de pessoas reunidas na buffer-zone a protestar durante a semana que antecedeu as negociações, boinas azuis das Nações Unidas tentam certificar-se que o evento decorre sem problemas, e que a passagem na buffer-zone se mantém aberta. Não resisto a meter conversa com um boina azul irlandês (quem melhor para vir manter a paz numa ilha dividida?), que me diz que não há violência no Chipre desde os anos 90, mas que tem pouca esperança que um acordo possa ser feito num futuro próximo. 

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Como pintar a Tunísia

“Como é que chegaste aqui?” pergunta-me admirado Faouzi, funcionário num hotel em Tozeur, uma pequena cidade-oásis no sul da Tunísia. Cheguei depois de ter visto o pôr-do-sol a encher o deserto de cor, e depois de percorridas as longas estradas que ligam a capital ao sul, levando-me de um norte-litoral desenvolvido a um sul marginalizado e esquecido. 



Sou a única estrangeira no hotel, e a minha presença levanta curiosidade. “Os turistas ocidentais já não vêm”, explica Faouzi. Antes vinham porque Tozeur, um oásis onde palmeirais convivem com arquitectura antiga, foi cenário de filmes de Hollywood (de Star Wars ao Paciente Inglês) e é uma das principais cidades históricas no deserto. “Agora os turistas têm medo”, diz Faouzi.

Os ataques terroristas no museu nacional Bardo e num resort em Sousse foram duros golpes no turismo, que constituía um dos principais sectores da economia tunisina. Faouzi não esconde o ressentimento: "a Europa teve mais ataques. Em Paris, Bruxelas, Berlim..." diz, mas os turistas não deixam de ir a França, ou à Alemanha, ou à Bélgica. Então, porquê deixar de ir à Tunísia?





Encolhemos os dois os ombros. Faouzi traz café e empresta-me uma bicicleta. No mapa aponta as melhores estradas pela floresta de palmeiras, o centro da antiga medina com arquitectura de argila a formar padrões geométricos, o mercado que diz ter as melhores tâmaras da Tunísia. E enquanto eu pedalo entre as palmeiras, a partilhar a estrada com camelos e carroças de cavalos, ou paro para beber um chá com amêndoas, pergunto-me realmente porquê. Que imagens moldam a Tunísia para ser vista como um lugar perigoso?



As imagens do museu Bardo, com a sua famosa colecção de mosaicos romanos, com sangue no chão e autocarros turísticos cravados de balas, ou os corpos cobertos com toalhas, dispersos pela praia do resort em Sousse. Vinte e duas pessoas, morreram no ataque ao museu Bardo em Março de 2015, e outras trinta e nove no ataque ao hotel de luxo em Sousse em Junho do mesmo ano.  Quase todos eram turistas, Depois dos ataques, o turismo na Tunísia sofreu o seu próprio atentado, com centenas de hotéis a fechar e milhares de empregos perdidos, num súbito declínio do sector que representava 15% do PIB nacional. 




Depois dos ataques, governos ocidentais impuseram restrições a viagens à Tunísia, que em alguns países não foram ainda levantadas. No Reino Unido, um dos países que enviava mais turistas para os resorts tunisinos, o governo ainda avisa "contra todas as viagens não essenciais". As medidas são vistas pelos tunisinos como injustas e demasiado duras quando comparadas com a resposta aos ataques em Paris e Bruxelas, como se fosse um castigo por a Tunísia ser um país muçulmano. Um castigo que garante aos extremistas o sucesso dos seus ataques: isolamento, desemprego, precariedade e divisão, semeados para do desespero poder recrutar mais jovens. Sobrerrepresentada nas fileiras do Daesh, a Tunísia é um dos países que produz o maior número de jihadistas, com cerca de seis mil jovens tunisinos a combater na Síria e no Iraque. 



No mapa do governo britânico a Tunísia está pintada de vermelho e laranja, cores que indicam o maior nível de perigo e ameaça. A Tunísia que vi tem outras cores: portas azúis e paredes brancas, o verde resplandecente das palmeiras, os raios dourados do sol de Inverno, as cores das romãs nos mercados, dos ramos de laranjeira, das pétalas de buganvília e os camelos cor de mel. Explosões, só de cor nos azulejos das velhas medinas ou nos tapetes bordados à mão.




quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Tunísia: seis anos da "Revolução de Jasmim"

Cheguei a Túnis no dia em que celebravam seis anos do que ficou conhecido como a “Revolução de Jasmim”, que marcou o começo da Primavera Árabe. Chovia e estava frio, o jasmim não sobreviveu a este inverno, e poucos tunisinos saíram à rua para celebrar a data da revolução. Por causa do frio, indiferença, ou por sentirem que seis anos depois há poucas razões para celebrar.


Portão da cidade antiga de Túnis
No dia 14 de Janeiro de 2011, depois de quase um mês de protestos que começaram com a autoimolação de um vendedor ambulante, o governo foi dissolvido e o presidente Ben Ali, no poder há mais de duas décadas, deixou a Tunísia. A imolação de Mohammad Bouazi, que com 26 anos vendia fruta nas ruas da cidade de Sidi Bouzid para sustentar a família, foi um acto de protesto contra a humilhação, os abusos de poder de oficiais locais e a falta de condições de trabalho que incendiou a Tunísia, e cujas chamas de espalharam por todo o Médio Oriente. 

Já passaram seis anos, mas ao caminhar no centro de Túnis pela avenida Bourguiba, onde milhares de manifestantes se reuniram durante os protestos, vejo arame farpado, veículos militares e soldados armados a proteger edifícios governamentais, como se a revolução ainda estivesse inacabada, e a Tunísia estivesse ainda a decidir o que fazer com os slogans de liberdade, dignidade e trabalho. 

Arame farpado, veículos militares e soldados na avenida principal de Túnis
Dias depois, assisti a uma manifestação no centro de Túnis. Dezenas de activistas seguravam cartazes com nomes de cidades no sul da Tunísia, onde o aniversário da revolução foi marcado por protestos contra a pobreza e a marginalização social. No ano passado houve tantos protestos e instabilidade nas cidades marginalizadas do centro e sul do país que o governo impôs um recolher obrigatório durante a noite.

“Não estamos a conseguir cumprir [as expectativas da revolução] porque o desemprego e as desigualdades sociais aumentaram”, disse o primeiro-ministro Youssef Chahed na televisão nacional durante o sexto aniversário da revolução.

Demonstração de solidariedade com protestos no sul 
Aziz, um engenheiro informático de Túnis, fala-me da enorme desigualdade entre o litoral norte e o sul, e dos protestos que têm decorrido nas zonas mais marginalizadas. Fala não só da desigualdade entre norte e sul, mas também da divisão entre islamistas e laicos que tem sido central na política tunisina. Para Aziz, a revolução mudou pouco. “O ditador pode ter caído, mas a corrupção e os abusos de poder continuam”, diz-me com pessimismo. “Precisamos de tempo, acho que só daqui a uma década é que a Tunísia pode encontrar equilíbrio e democracia”.

A revolução teve um impacto negativo na economia 
Após a queda do governo autoritário de Ben Ali, no poder há 23 anos, a Tunísia teve as primeiras eleições livres, e ao contrário dos países na vizinhança que caíram em guerras civis ou golpes militares, a revolução tunisina foi vista como um modelo de transição democrática. Apesar da instabilidade que se seguiu à eleição de um partido conservador islamista e uma forte mobilização da oposição, ou dos assassinatos políticos atribuídos a grupos de salafistas extremistas, o esforço pelo diálogo nacional e compromisso foi reconhecido internacionalmente com o prémio Nobel da Paz em 2015, atribuído ao sindicato de trabalhadores, advogados e activistas de direitos humanos na Tunísia.


Se há uma coisa com que todos os tunisinos que conheci concordam, é o orgulho no prémio, e admiração pelos que enfrentaram o exército para exigir mudança de regime e democracia. "Foi aqui que a Primavera Árabe começou, e só aqui é que teve sucesso", diz-me Sofiene um jovem fotógrafo de Túnis. Mesmo com o cenário de crise económica, a maioria continua a ter orgulho no que foi conquistado com a revolução. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Holanda, a tradição e a "ressaca colonial"

Quando me mudei para a Holanda há uns meses atrás achei que estava a mudar-me para um país progressivo, considerado um dos países mais avançados em termos de direitos, liberades e tolerância, sempre no topo dos rankings de progresso social. 

Quando Dezembro começou a aproximar-se, foi com choque que comecei a ver inesperadas caricaturas racistas em montras de lojas espalhadas um pouco por toda a cidade. Amigos holandeses explicaram que se tratava do Zwarte Piet, em português o "Pedro Negro", uma figura do folclore holandês. Segundo a tradição holandesa, o Pedro Negro é o ajudante de São Nicolau, que em Dezembro vem aos Países Baixos distribuir doces e prendas às crianças.


Vestido com trajes renascentistas, para muitos uma clara referência ao colonialismo e escravatura do Império Holandês, esta figura não incomoda a maioria dos holandeses. Em desfiles durante o final de Novembro e o início de Dezembro, as ruas estão cheias de holandeses que pintam a cara de preto, desenham enormes lábios vermelhos, põe perucas crespas e vestem o traje do Pedro Negro, o ajudante apalermado de São Nicolau.



Nos últimos anos, a sociedade holandesa tem debatido esta tradição que é vista no exterior como ofensiva e racista. Em 2015, as Nações Unidas pediram o fim da caricatura do Pedro Negro, "retratado de forma a reflectir estereótipos negativos de pessoas com ascendência africana, e visto por muitos como um vestígio da escravatura". Mas a maioria da população holandesa não vê no Pedro Negro uma figura racista, e resiste a mudar a tradição, descrita num documentário recente como uma assutadora "ressaca colonial".



Quando o desfile veio a Leiden, a pequena cidade universitária onde estou a viver, decidi juntar-me a um grupo de activistas locais para protestar contra as representações racistas. Naomi, uma activista holandesa com raízes afro-caribenhas, disse-me que a tradição sempre a fez sentir desconfortável. "Na escola sentia-me sempre muito desconfortável nesta altura do ano", disse. "Sentia-me diferente, achava que não era normal. Sentia-me mal. Na altura era muito nova e não sabia o que era racismo. Mas depois começei a ler, a fazer pesquisa sobre racismo, privilégio branco". 




Nos últimos anos a opinião pública tem vindo a mudar lentamente, "mas porque é que tem que demorar tanto?" pergunta Naomi. Somos cerca de 30 activistas, num canto da rua principal de Leiden, rodeados de barreiras de metal e polícia, enquanto várias centenas de pessoas se juntam para ver o desfile. Não podemos sair da zona fechada que nos foi destinada para protestar, vedada para nos proteger de um grupo de extrema-direita que nos ameaçou e confrontou. "Acho que querem silenciar-nos", diz Naomi.



Os nossos cartazes são quase invisíveis no pequeno canto vedado, enquanto a multidão aplaude o desfile de caricaturas: caras pintadas de negro, gigantescos lábios vermelhos, perucas apalhaçadas, argolas de ouro e trajes renascentistas que já estão enraizadas no imaginário holandês. Mas outras figuras, mais chocantes e assustadoras, também aparecem: crianças loiras com as caras pintadas de negro, perucas negras com ossos presos nos caracóis crespos, e tecidos com padrão de leopardo, como a mais ofensiva e ultrajante caricatura imaginável. 



Ghaled, um dos organizadores do protesto, diz-me que se preocupa especialmente com o impacto que estas representações podem ter nos mais novos. "É muito mau para as crianças. Não só as crianças negras, mas todas as crianças" que crescem com estas imagens, diz-me. Logan, um professor americano a viver na Holanda há quatro anos que também participa na manifestação, concorda que a imagem do Pedro Negro é "terrível" para os mais novos, especialmente quando "a única imagem que se vê é um estereótipo".



Alguns holandeses reagem com hostilidade aos nossos cartazes, confrontam-nos para nos dizer que o Pedro Negro não é racista. Para Logan, não cabe ao holandês branco decidir o que é ou não racista. Diz-me compreender "que tradições e crenças profundamente enraizadas sejam difíceis de mudar" e que aceitar que a figura que faz parte da infância dos holandeses é racista pode ser difícil para muitos. Mudar uma tradição enraizada pode ser difícil, mas espanta-me a maneira como alguns holandeses zangados vêm gritar connosco para nos dizer que não temos razão, incapazes de admitir que muita gente se pode sentir ofendida com a tradição.

Os defensores mais tenazes do Pedro Negro dizem estar a defender a "nossa" tradição, e que os imigrantes e filhos de imigrantes (muitos nascidos e criados na Holanda) não têm o direito de mudar a "nossa" tradição. O debate não é só sobre a negritude do Pedro Negro, mas também sobre a brancura da sociedade holandesa. Sobre quem tem poder para decidir o que é a tradição, e como deve ser representada. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Infância interrompida: fotografias tiradas por crianças sírias

A vida para os refugiados sírios na Turquia é especialmente difícil para as crianças. Forçadas a deixar as suas casas, a interromper os estudos, e a adaptar-se a condições difíceis de instabilidade e vulnerabilidade, as crianças sírias têm que crescer demasiado rápido.


Crianças com menos de doze anos trabalham doze horas por dia, seis dias por semana, para ganhar um salário muito abaixo do salário mínimo na Turquia, essencial para sustentar as famílias.

“Trabalho numa máquina de costura dez horas e meia por dia, seis vezes por semana. A minha mãe era professora na Síria e eu era um aluno muito aplicado. Sinto muito falta da escola, mas agora tenho que trabalhar. O meu pai está na Alemanha, e a minha família ainda está à espera para se juntar a ele. Quando conseguirmos ir para lá espero poder continuar os meus estudos.”
-Ahmed, 13 anos


De acordo com a Unicef, mais de metade dos 2,7 milhões de refugiados sírios registados na Turquia são crianças, e só 20% está a frequentar uma escola formal. Apesar do governo turco ter concedido a crianças sírias o acesso a escolas públicas, a grande maioria não pode usufruir da educação a que tem direito devido a barreiras linguísticas, dificuldades económicas e falta de informação e de integração.

“A minha vida aqui não é boa. A língua turca é difícil e eu não consigo aprender. Somos sírios e [os turcos] tentam envergonhar-me. Querem que sinta vergonha por ser da Síria. Mas eu não tenho vergonha, nunca! Tenho orgulho de ser síria. Há tantas crianças turcas que não provocam… gritam palavras feias. Deixa-me muito zangada. Não quero ficar aqui. O meu único sonho é voltar para casa. Não quero mais nada.”
- Aisha, 10 anos


Muitas crianças não vão à escola por não falarem turco, ou porque tem dificuldades em integrar-se. Para combater este problema a Revi, um grupo de voluntários internacionais e locais, abriu três escolas para mais de 100 crianças na cidade costeira de Izmir, onde vive um grande número de refugiados sírios. A Revi conseguiu contractar cinco professoras sírios da comunidade, e dar aulas de turco e inglês, para além de desenvolver projectos de integração.


No Verão de 2016, ajudei a Revi a organizar um workshop de fotografia para crianças sírias a viver em Izmir. Demos máquinas descartáveis a várias crianças e pedimos que fotografassem o seu bairro. Os resultados foram surpreendentes: um olhar comovente sob a vida no bairro sírio de Izmir, com as suas ruínas e edifícios decrépitos, mas também com os seus mercados coloridos que vendem produtos de Alepo, um vendedor de algodão doce e até um raio de sol a iluminar um beco.



“Estava a estuda na Síria e queria continuar a ir à escola, mas por causa da guerra não pude. Estou a estudar aqui, mas não estou feliz. Não quero ver crianças sem poderem ir à escola, ou a chorar. Chega de guerra… não quero ver pessoas com armas.”
- Nadia, 10 anos


“Vi morte, sangue, violência mesmo à minha frente. Era tudo tão difícil. No início tinha medo de tudo, mas o que vi deu-me força. Tenho muita esperança na Síria. Acho que vai voltar ao que era antes da guerra. E como eu, as coisas terríveis que a Síria viu vão tornar o país mais forte.”
- Aisha, 10 anos


“O meu trabalho é a costura. A maioria dos sírios que estão a viver na Turquia trabalha nesta área. Passamos a maior parte do tempo a trabalhar. Não sinto satisfação, mas tenho que o fazer. Estou sozinho aqui, a minha família ainda está na Síria, falamos uma vez por mês. Já estou aqui há nove meses, tenho tantas saudades…”
- Mahmoud, 15 anos



A Revi está a receber donativos que ajudem a apoiar as suas escolas e o programa “Work to School”

(Todas as fotografias foram tiradas por crianças sírias em Izmir, na Turquia)

domingo, 21 de agosto de 2016

De passagem por Calais

A pequena cidade de Calais, no norte de França, tornou-se num porto de miséria desde o verão passado, quando a crise de refugiados começou a chegar à Europa. 

No norte de Calais, um dos principais pontos de acesso ao Reino Unido, improvisou-se um campo de refugiados, onde milhares de pessoas esperam, presas por quilómetros de cercas cobertas de arame farpado, por uma oportunidade para atravessar os cerca de 50 quilómetros que separam o porto francês da Inglaterra. 

As cercas e o arame farpado que rodeiam o campo custaram 15 milhões de euros ao governo britânico, enquanto cabe à polícia francesa vigiar as fronteiras e estradas.


Uma enorme força policial patrulha o desespero de milhares de pessoas com indiferença ou crueldade. Estão lá para se certificar que as estradas vedadas para o Reino Unido são só para os que têm o passaporte certo. E enquanto eu atravessei facilmente essas estradas, de passagem pelo norte de França, milhares enfrentam a polícia e o arame farpado, tentam entrar em camiões de mercadorias ou comboios arriscando a vida para atravessar o Eurotúnel até Inglaterra. 

Milhares de pessoas chegam a Calais depois de enfrentarem dificuldades inimagináveis, com esperança de conseguirem pedir asilo no Reino Unido, fugidos de países devastados pela guerra. Esperam por uma oportunidade na "selva" de Calais, como os moradores chamam ao acampamento improvisado no norte da cidade. 


Calais é pobreza, desespero, pó. Mas é também uma enorme energia e hospitalidade, momentos simples de alegria, e o engenho e a criatividade para construir casas, igrejas, mesquitas e lojas no meio da “selva" com o pouco que está disponível. Descobri surpreendida que o campo tinha vários cafés, restaurantes, uma impressionante igreja etíope e até uma biblioteca. 


Igreja ortodoxa etíope
No meu primeiro dia no campo senti um clima tenso, pairava a preocupação porque as autoridades de Calais levaram alguns dos refugiados a tribunal para fechar e destruir as lojas e restaurantes improvisados, criados para responder às necessidades de alimentar os milhares de residentes no campo. Foi com alívio e alegria que soubemos da decisão do tribunal francês de rejeitar os pedidos de demolição, e manter as lojas que servem refeições, bebidas e abrigo aos residentes. 

Organizações humanitárias como a Help Refugees estimam que cerca de 9 mil pessoas vivem no campo, a maioria do Sudão, Afeganistão, Síria e Iraque. As lojas, que para a presidente da câmara de Calais deviam ser demolidas por representarem "economias paralelas que não pagam impostos", são fundamentais para alimentar os números crescentes de moradores no campo, e dar abrigo e refeições aos que necessitam. As lojas e restaurantes que os engenhosos moradores abriram vendem refeições, chá, produtos de higiene, e são importantes espaços de convívio.

"Não somos perigosos, estamos em perigo", diz um dos muitos cartazes feitos pelos moradores e espalhados pelo campo. "Ser negro não é um crime", diz outro. Ser de um país em conflito também não. 

sexta-feira, 22 de julho de 2016

"Afinal, quem fala hoje da aniquilação dos arménios?"

Cheguei à Arménia vinda da Geórgia, e apesar de apenas algumas horas ligarem as capitais dos dois países, a viagem por estradas montanhasas levou-me a um país com uma cultura, língua, e até um alfabeto completamente diferentes. 

Yerevan, a capital arménia, é uma cidade rosa. Um passeio pelo centro da cidade, onde avenidas recentemente construídas estão cheias de lojas de marca e restaurantes gourmet, com os seus edifícios de pedra vulcânica em vários tons de rosa, encontram-se poucos vestígios da história negra que marca o país.


Yerevan, cidade rosa

"Afinal, quem se lembra hoje da aniquilação dos arménios?", perguntou Adolf Hitler num discurso feito em 1939, pouco antes de começar o extermínio sistemático dos judeus europeus, que veio a ser conhecido como genocídio. O Holocausto foi reconhecido por quase todo o mundo, negá-lo é um crime em vários países, mas a perseguição e o extermínio de cerca de um milhão e meio de arménios pelo império otomano só é oficialmente reconhecido por alguns, e continua a ser negado pela Turquia.

Entre 1915 e 1922, líderes do governo turco levaram a cabo uma campanha de extermínio,  violação, deportação e pilhagem contra a minoria arménia no Império Otomano. Numa primeira fase, as populações arménias foram massacradas e o seu património pilhado e destruído, com aldeias e vilas inteiras a serem apagadas do mapa. Depois da execução de rapazes e homens, seguiu-se a deportação de mulheres, crianças e idosos em marchas de morte até ao deserto sírio.



No Museu do Genocídio Arménio 

"Violações e espancamentos eram comuns. Os que não eram imediatamente morto eram levados pelas montanhas e desertos sem comida, bebida ou abrigo. Centenas de milhares de arménios eventualmente sucumbiram ou foram mortos", escreve o historiador David Fromkin num livro sobre a queda do Império Otomano.

Para marcar os 100 anos dos massacre, a Arménia escolheu a flor não-me-esqueças como símbolo do genocídio que o resto do mundo parece ter esquecido. 


Não-me-esqueças - a flor símbolo do genocídio arménio

Mesmo Israel, que prometeu "nunca esquecer" o Holocausto, é um dos muitos estados que não reconhece o genocídio arménio, apesar de ter uma população de cidadãos arménios descendentes de sobreviventes do genocídio a viver em Jerusalém, onde há um bairro arménio dentro das muralhas da cidade antiga. Os cidadãos arménios de Israel vêem com amargura a memória selectiva do governo israelita.

Na Turquia, a negação é sistemática. O que aconteceu em 1915 é diluído no contexto da guerra, e o termo genocídio é sistematicamente negado. As conclusões dos historiadores são rejeitadas, e questionar sequer o que aconteceu com a população arménia pode levar a penas de prisão. Em 2005, o escritor Orhan Pamuk foi levado a tribunal por ter referido o extermínio dos arménios numa entrevista a um jornal suiço. 



Mosteiro arménio
Falar do genocídio arménio seria questionar os mitos nacionais da fundação da Turquia, e enfrentar uma história negra de limpeza étnica e violência. Seria questionar os símbolos nacionais, o processo de "turquificação" que apagou o passado multiétnico e multicultural da Anatolia.

Para os arménios, a memória da perda e o trauma do genocídio tornaram-se parte integrante da identidade nacional. Não-me-esqueças, diz a flor que se encontra por todo o país.