segunda-feira, 10 de julho de 2017

O Chipre e as duas Nicósias

Nunca estive numa cidade onde tivesse que andar com dois mapas: um para o sul de Nicósia, a parte grega da República do Chipre, outro para a proclamada República Turca de Chipre do Norte. Dois mapas, duas línguas, duas moedas, dois museus de “luta nacional”. Em Nicósia, duas bandeiras rivais enfrentam-se no meio do checkpoint que separa as duas partes da cidade antiga, dividida desde a invasão turca de 1974 após um golpe de estado fracassado de ultranacionalistas gregos que pretendiam unir o Chipre à Grécia. 

Bandeira grega e cipriota no sul junto à buffer-zone
“São dois países diferentes!” grita um funcionário turco no checkpoint da rua Ledra, que atravessa o centro histórico de Nicósia, exaltado com a minha tentativa de atravessar as duas partes da cidade por checkpoints diferentes. Depois de atravessar checkpoints várias vezes por dia, deixei de me surpreender com a naturalidade com que o arame farpado, as barricadas, os postos de vigia e imensos muros fazem parte da paisagem da cidade. Até o simples acto de pedir um café, que tanto pode ser chamado de café grego, turco ou cipriota (apesar de ser preparado exactamente da mesma maneira), está carregado de política. A República do Chipre, a parte grega no sul da ilha, faz parte da União Europeia, enquanto a autoproclamada República Turca de Chipre do Norte só é reconhecida pela Turquia, e conta com a presença militar de 40 mil soldados turcos.

Café junto a barreira de separação
Do lado grego da rua Ledra, senhoras bebem refrescos junto a uma barricada de sacos de areia, e na buffer-zone, controlada por capacetes azuis da ONU, vasos de plantas e flores delimitam as filas de espera para o controlo de passaportes e bilhetes de identidade. Se não fossem os cartazes das Nações Unidas, os graffitis políticos e os ocasionais oficiais com boinas azuis, quase podia pensar que estava a atravessar uma fronteira como qualquer outra. Mas no Chipre, uma ilha com pouco mais de um milhão de habitantes, as fronteiras são tudo menos típicas. Checkpoints dos dois lados não poupam as mensagens políticas e os cartazes sensacionalistas carregados com um nacionalismo agressivo. Se no lado sul vi mensagens contra os “colonos turcos” e a defender a enosis, a união com a Grécia rejeitada pelos habitantes turcos do Chipre e hoje defendida apenas por uma minoria de nacionalistas cipriotas gregos, no norte vi incontáveis bandeiras turcas e imagens de Ataturk.

Plantas numa das barreiras de separação
No checkpoint do Palácio Ledra, onde negociações para reunir a ilha têm sido repetidamente organizadas, resultando sempre em fracasso, o lado grego exibe cartazes com imagens de atrocidades cometidas por milícias turcas, enquanto no lado turco uma placa provocadora dá ao visitante as boas-vindas à “para sempre” República Turca de Chipre do Norte. Na buffer-zone entre os dois checkpoints encontrei um pequeno oásis de sanidade: a organização 'Home for Cooperation', uma associação de diálogo entre os dois lados da ilha, onde conheci Evren, um turco cipriota que me falou da situação política e das várias iniciativas que tentam criar pontes entre os dois lados. Situada no centro de Nicósia,  numa zona abandonada entre os checkpoints desde a divisão da ilha em 1974, a associação promove o diálogo e a confiança através de eventos culturais, aulas de turco e grego, e iniciativas que procuram quebrar as barreiras que dividem a comunidades grega e turca no Chipre.

Manifestantes do movimento "Unite Cyprus Now" seguram bandeiras com a palavra "paz" em grego e turco
Evren faz parte do grupo de activistas que lutam pela união do Chipre. Durante anos dedicaram-se à criação de um espaço de encontro na buffer-zone, que se tornou num dos poucos espaços onde membros das duas comunidades se podiam encontrar. Entre 2007 e 2009, o apoio das Nações Unidas e da União Europeia permitiu o financiamento da restauração de uma casa abandonada na buffer-zone desde a divisão do Chipre em 1974. “Contactámos os proprietários da casa, uma família arménia”, diz-me Evren, e depois disso foi fácil comprar e renovar a casa na zona abandonada entre as linhas que dividem o Chipre. No entanto, Evren e a sua associação representam uma minoria de cipriotas que se atreve a atravessar as barreiras que dividem o Chipre. Nicolas, um cipriota grego que conheci em Larnaca, não acredita que a união seja possível na sua geração, sublinhando as diferenças que separam um sul mais desenvolvido de um norte isolado, e os interesses de poderes internacionais que tornam um acordo de unificação improvável. 

Forças de manutenção da paz da ONU no checkpoint da rua Ledra/Lokmaci
Uma semana antes do recomeço das negociações de reunificação, que há dias António Guterres veio anunciar terem mais uma vez falhado, assisti a manifestações na buffer-zone em defesa de um acordo de reunificação. Enquanto músicos dos dois lados da ilha tocavam entre os checkpoints, bandeiras e cartazes com mensagens a pedir diálogo e cooperação dançavam a um ritmo esperançoso e contagiante. Entre as poucas dezenas de pessoas reunidas na buffer-zone a protestar durante a semana que antecedeu as negociações, boinas azuis das Nações Unidas tentam certificar-se que o evento decorre sem problemas, e que a passagem na buffer-zone se mantém aberta. Não resisto a meter conversa com um boina azul irlandês (quem melhor para vir manter a paz numa ilha dividida?), que me diz que não há violência no Chipre desde os anos 90, mas que tem pouca esperança que um acordo possa ser feito num futuro próximo. 

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