domingo, 6 de setembro de 2015

Bósnia: chegar a Sarajevo

Cheguei a Sarajevo a meio de Agosto, mas demorei muito tempo a escrever as primeiras palavras sobre a cidade onde ficarei a morar nos próximos meses. Sarajevo é difícil de descrever. Cada dia esta pequena cidade apertada entre as montanhas me parece diferente. As cores parecem mudar, há novos pormenores em que reparo. Sarajevo é misteriosa, estende-se ao longo do rio, vagarosa.

Cheguei a carregar o fardo de tudo o que tinha lido e visto sobre a cidade antes de a visitar pela primeira vez: a “Jerusalém da Europa”, a guerra entre 1992 e 95, o mais longo cerco da história moderna. Com o desmantelamento da antiga Jugoslávia, a Bósnia, onde muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos coexistiram durante séculos, entrou em guerra. Entre 1992 e 1995 cerca de 100 000 pessoas foram mortas. O cerco de Sarajevo por tropas sérvias durou 1 425 dias. Envolveu artilharia pesada e disparos sobre todas as cabeças: mulheres, crianças, e até animais domésticos.

Durante dias vivi a cidade a partir dessas imagens e números, que vinham sempre assombrar-me com evocações guerra. Ao olhar as montanhas que rodeavam a cidade não via a sua beleza, mas pensava nos snipers que lá se escondiam há 20 anos. Nas ruas não via as fachadas coloridas do período austro-húngaro, ou a influência otomana do bairro antigo de Baščaršija, mas os buracos de balas e bombas nas paredes, deixados abertos como feridas que não saram.


Via homens amputados nas ruas, e lembrava-me de ler que tantos braços e pernas eram cortados com serras, muitas vezes sem anestesia. Observava as pessoas sentadas no eléctrico que percorre a cidade ao longo do rio, e perguntava silenciosamente com o olhar: onde estavas há vinte anos? 

Durante a guerra, Sarajevo era uma cidade sem gatos e sem árvores. Só havia cães esfomeados a vaguear pelas rua porque os donos fugiam da cidade ou não podiam alimentá-los. Por isso, os cães devoravam os gatos que restavam. As árvores eram cortadas para queimar lenha durante os cortes de electricidade, ou para que as famílias conseguissem aguentar o frio no inverno. Às vezes eram usados livros para fazer fogueiras. Pergunto-me que escritores terão aquecido as noites mais frias.

Mas em Sarajevo já há gatos e árvores. Há ameixeiras e salgueiros a crescer junto ao rio. Há toda uma cidade que vive e que vibra, que consegue encontrar piadas sobre a guerra e rir sobre os piores momentos. “O sentido de humor era a única coisa que nos restava”, disse-me Alija, um Bósnio que conheci numa livraria no centro da cidade, e que vive em Chicago, onde há um grande número de imigrantes bósnios. Alija visita Sarajevo todos os anos no Verão, não só pelas memórias que o ligam à cidade onde cresceu e à família que ainda cá vive, mas pela beleza de Sarajevo que sempre o surpreende e aconchega. 

Sarajevo vive para além da guerra, mesmo que o turismo na cidade gire em torno dos tours do cerco e dos snipers, dos museus e galerias sobre massacres, das souvenirs da guerra. No bairro mais turístico vendem-se canetas feitas com balas, porque escrever é uma arma, e porque Sarajevo se reescreve. 

Canetas feitas a partir de balas

A minha primeira semana na cidade foi caótica, passada a "trabalhar" no festival de cinema de Sarajevo, que enche a cidade de movimento. Vi dezenas de filmes, entrevistei realizadores e conheci pessoas do mundo inteiro, do México a Singapura. Conheci Danijel, de Banja Luka, no norte da Bósnia, e juntos vimos vários filmes. O favorito de Danijel foi um documentário sobre as florestas bósnias, que entediou a maioria dos espectadores internacionais, mas para ele foi o melhor documentário sobre a Bósnia, “porque não era sobre a guerra”.

Ao final da tarde, subimos até um dos miradouros da cidade para ver o pôr-do-sol. Tons dourados preenchiam o céu, andorinhas voavam junto ao rio, e enquanto se ouvia a chamada para a oração vinda das várias mesquitas de Sarajevo, uma paz surpreendente instalava-se sobre a cidade, num desses momentos que tornam um lugar inesquecível. Sarajevo é assim: cativante, misteriosa com todas as suas cicatrizes. 

Já há gatos em Sarajevo

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