domingo, 20 de setembro de 2015

Sarajevo: múltipla e dividida

Em Sarajevo, vivo num bairro onde há uma mesquita, uma igreja franciscana e uma sinagoga. Se caminhar em direcção ao rio estou a 5 minutos de uma igreja ortodoxa, a poucos metros da maior catedral da Bósnia, e da mesquita Gazi Husrev-begova, a mais representativa da presença otomana em Sarajevo.

Se por vezes me sinto privilegiada por poder caminhar pelas ruas de uma cidade tão diversa, onde posso ouvir simultaneamente a chamada à oração dos minaretes e o tocar dos sinos das igrejas, outras vezes sou confrontada com as paredes esburacadas por balas, e a lembrança da história de divisão e conflito desta cidade.

Antes da guerra, Sarajevo era conhecida como a “Jerusalém da Europa”, uma cidade onde coexistiam diferentes religiões e etnias, e um símbolo de tolerância e coexistência pacífica. Quase todas as histórias que li sobre Sarajevo começam assim, com a nostalgia de uma cidade multicultural e pacífica. Depois surge o conflito, o crescimento dos movimentos nacionalistas, o desmantelamento da ex-Jugoslávia  e depois a guerra fratricida.

Bósnios sérvios opõem-se a bósnios muçulmanos, numa divisão que ainda permanece na cidade. Com a assinatura dos Acordos de Dayton em 1995, acordos entre os grupos étnicos que terminaram a guerra, a Bósnia foi dividida em duas entidades: a Federação, que representa os muçulmanos e os croatas, e a República Sérvia que representa os sérvios. Sarajevo foi dividida em duas administrações locais autónomas: o centro de Sarajevo é parte da federação; o leste da cidade, que emergiu como um bairro suburbano, é integrado na parte sérvia.


Apesar de não existir uma barreira física a dividir as duas partes da cidade, a separação é clara: Sarajevo tem duas estações de autocarros, duas universidades, dois sistemas escolares diferentes. Bósnios muçulmanos (conhecidos como bosníacos) estudam por livros diferentes dos bósnios sérvios, aprendem diferentes versões da história.

Apercebi-me da divisão quando cheguei à cidade vinda de Montenegro, e tive que sair na estação de autocarros do leste, onde chegam todos os autocarros vindos da Sérvia, Montenegro e da parte sérvia da Bósnia. Todos os outros chegam à estação central de Sarajevo.

Bosníacos-muçulmanos, Croatas-católicos e Sérvios-ortodoxos compõem e dividem a Bósnia pós-Dayton, e estes três grupos étnico-religiosos têm sempre que estar representados. Foi definido que a presidência da Bósnia seria tripartida e reservada aos três grupos, que rodam o cargo a cada 8 meses. O sistema político bósnio foi considerado um dos mais complexos do mundo.

Cada grupo tem a sua religião e a sua língua: o Bósnio, o Croata, e o Sérvio, apesar de serem línguas semelhantes, que diferenciam tanto como o inglês britânico do inglês americano. Para fins oficiais, tudo deve estar escrito nas três línguas, mesmo que a frase seja idêntica. Por isso nos maços de cigarros se lê: pušenje ubija, pušenje ubija, pušenje ubija. A Bósnia é o único lugar do mundo onde fumar mata três vezes.
Fumar mata: em bósnio, croata e sérvio
Há pouco espaço para uma identidade simplesmente “bósnia”, para os que não querem ser colocados em nenhuma das três categorias étnico-religiosas, e talvez ainda mais grave, pouco espaço para minorias. A constituição bósnia divide o poder entre os três grupos que têm que estar representados, deixando de fora as minorias. Por isso, foi levada ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2009, por representantes das comunidades judaicas e ciganas, e considerada discriminatória.

Antes da guerra, Sarajevo tinha uma grande percentagem de casamentos interétnicos, não era difícil encontrar numa mesma família várias origens e religiões. No Festival de Cinema de Sarajevo, o realizador bósnio-dinamarquês Vladimir Tomic contou a história de um amigo que vinha de uma família com raízes sérvias e muçulmanas. Durante a guerra foi recrutado simultaneamente pelas forças sérvias e bósnias. “Decidiu fugir de Sarajevo para não ter que disparar contra ele próprio”, disse Vladimir.

Hoje, os casamentos mistos são mais raros. Cada grupo cresce geralmente separado, aprende uma versão da história e tem pouco contacto com “o outro” que vive na cidade vizinha ou no lado oposto da mesma cidade.

 “Quando falamos sobre a guerra há sempre conflito, cada um tem a sua versão da história e não nos entendemos”, disse-me Strahinja, bósnio sérvio que vive no leste de Sarajevo e estuda Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Sarajevo. “Mas quando estamos em festas ouvimos e cantamos as mesmas músicas, somos todos irmãos.”

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