quarta-feira, 29 de junho de 2016

"Podes deitar-te nos meus olhos"

"Não temos muito espaço aqui em casa", diz uma mulher síria de Alepo, que se esforça por receber meia dúzia de convidados na sua casa em Basmane, no bairro sírio de Izmir. Espremidos na pequena divisão que é quarto, sala de estar e de jantar, somos recebidos com uma hospitalidade enternecedora. Não há espaço, mas há sempre espaço. "Podes deitar-te nos meus olhos", diz com um sorriso triste.

Em Basmane a habitação é precária, mas é difícil para qualquer família síria alugar um apartamento noutro bairro de Izmir. Só em Basmane, um labirinto de ruas estreitas e íngremes que se estendem até uma fortaleza no ponto mais alto da cidade, apartamentos decrépitos são alugados a um preço que as famílias sírias conseguem pagar.



A humidade e as paredes de tinta lascada, as infiltrações de água e os buracos por onde passam ratos não são a maior preocupação. As preocupações passam mais pelas más notícias da Síria, os familiares desaparecidos, a resposta dos pedidos de asilo, a possibilidade de serem despedidos no dia seguinte sem qualquer razão, ou de não receberem salário. Forçados a trabalhar ilegalmente, os refugiados sírios vivem em situações de grande vulnerabilidade.

A Turquia nega a refugiados não-europeus a possibilidade de integração permanente no país, integrando os refugiados sírios num regime de "protecção temporária", que lhes permite aceder a alguns direitos e serviços básicos, mas a maioria vive num estado de insegurança.

A "protecção temporária" responde às necessidades imediatas de protecção dos que fogem da guerra, mas mantém a grande maioria de refugiados numa situação de grande vulnerabilidade, sem apoio do governo e com muitas dificuldades em conseguir o direito de trabalhar. 



Só os refugiados que são alojados em campos de refugiados recebem um pequeno subsídio do governo turco, mas a esmagadora maioria dos refugiados vive em cidades onde trabalham ilegalmente por salários miseráveis, e onde pagar a renda de quartos minúsculos já é uma luta diária. 

Mas apesar das dificuldades em sobreviver nas cidades turcas, e alimentar famílias numerosas com salários de 200 euros por mês, muitos preferem a pobreza urbana à prisão dos campos de refugiados. "Não queremos viver da ajuda do estado", diz-me um pai de seis crianças que recolhe plástico do lixo para vender para reciclagem. "Só queremos uma vida normal", diz.



Com as vidas interrompidas pela guerra, a muitos só resta aguardar um retorno à normalidade, e sonhar com um regresso à Síria. Como uma avó de Alepo, que apesar de paralisada do lado direito por um AVC e sem acesso a serviços de saúde na Turquia, pega numa caneta para desenhar um mapa da Síria com a mão esquerda. Desenha uma Síria inteira, num só traço, sem territórios divididos por ditaduras, tensões sectárias ou fundamentalismos.

"Quando voltarmos vamos fazer da Síria o melhor país do mundo", diz. 

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Smyrna - Síria : sobre ver cidades arder

Ao caminhar pelas ruas de Basmane, o bairro de Izmir que hoje alberga milhares de refugiados sírios, ouço turco, árabe e curdo. Três línguas e dois alfabetos diferentes, que relembram que Izmir, outrora um dos principais centros mercantis do Império Otomano, foi uma cidade multicultural, onde turcos, gregos, arménios e judeus coexistiram durante séculos. 

A cidade costeira de Izmir era conhecida como 'Smyrna'
Apesar de ter sido entrege à Grécia no final da Primeira Guerra Mundial com a derrota do Império Otomano, Smyrna, como antes era conhecida a cidade, foi recapturada pelo exército turco a 9 de Setembro de 1922. Quatro dias depois a cidade foi consumida pelas chamas de um incêndio que destruiu os bairros gregos e arménios, e que levou milhares dos seus habitantes para o cais, onde refugiados desesperados foram mortos, violados e roubados pelo exército e milícias turcas.

Durante o fogo de Smyrna, cerca de 100 mil pessoas morreram, enquanto navios ocidentais ancorados no porto assistiam à cidade em chamas sem fazer nada.


"O mais estranho era a maneira como eles gritavam todas as noites à meia-noite. Eu não sei porque é que eles gritavam a essa hora. Nós estávamos no porto e eles estavam todos no paredão e à meia-noite começavam a gritar", escreveu Ernest Hemingway num conto chamado "A doca de Smyrna". No conto, baseado no que de facto aconteceu na cidade em 1922, marinheiros ocidentais ancorados no porto assistem ao massacre de refugiados gregos e arménios que procuraram abrigo no cais sem fazer nada. "O pior eram as mulheres com bebés mortos. Não desistiam deles. Podiam ter bebés mortos há seis dias. Não desistiam deles."

O cenário soa estranhamente familiar hoje. Enquanto corpos de crianças sírias aparecem na costa do Mediterrâneo e milhares de refugiados desesperados estão presos nas fronteiras, a Europa constrói fortalezas e assiste de longe às chamas. 'Nós' estamos no porto seguros, 'eles' estão no paredão desesperados, entre as chamas das cidades que ardem e as ondas que engolem os que tentam fugir. A Smyrna de há um século atrás não é muito diferente das cidades que ardem hoje na Síria.


O porto de Izmir na actualidade
Pouco resta da Smyrna multicultural, que viu a sua diversidade extinta no processo de "turquificação" que lhe mudou o nome para Izmir. Smyrna não cabia não projecto nacionalista de uma "Turquia para os turcos", por isso a cidade foi "purificada" da sua diversidade religiosa e cultural pelas chamas. 


segunda-feira, 13 de junho de 2016

A infância é curta demais em Basmane

Ao longo das semanas que passei a visitar famílias de refugiados sírios a viver na cidade turca de Izmir, tive que me adaptar a uma nova noção de idade. Envelhece-se mais rápido em Basmane, o bairro que concentra as famílias sírias. Aos 50 anos, dizem aos homens que são velhos de mais para trabalhar.

Crianças e adolescentes arranjam mais facilmente trabalho, estão na idade certa para serem explorados. Segundo dados da Unicef, metade dos refugiados sírios na Turquia são crianças, e 80% não vai à escola. Uma grande maioria trabalha por salários miseráveis, e carrega a responsabilidade de sustentar a família. 

Uma menina síria experimenta sapatos doados a famílias de refugiados em Izmir

Só em Janeiro deste ano é que o governo turco introduziu a possibilidade de adquirir autorizações de trabalho para os quase 3 milhões de refugiados sírios no país. Mas até agora menos de 0,1% conseguiu candidatar-se às licenças de trabalho.

"Todas as pessoas que entrevistamos estão a trabalhar ilegalmente," diz-me  Dilan Taşdemir, membro da organização Halklarin Koprusu, que tem trabalhado com refugiados desde que a Turquia se tornou num dos principais destinos os sírios que fogem da guerra. Segundo Dilan, que conduziu um estudo com mais de 100 pessoas a viver na área de Basmane, a grande maioria dos sírios ganha menos que o salário mínimo turco (cerca de 1600 liras, ou 485 euros), e 30% das crianças em idade escolar está a trabalhar.

Um brinquedo abandonado nas ruas de Basmane
Como a licença de trabalho depende de um contrato que deve ser antes assinado pelo empregador, muitos preferem ter sírios a trabalhar ilegalmente, sem ter que lhes pagar o salário mínimo. Os sírios trabalham 12 horas por dia, seis dias por semana, para ganhar entre 500 a 1000 liras (150 a 300 euros), salários que por vezes têm que sustentar famílias com 6 ou 7 membros.

Numa situação de vulnerabilidade, sem nenhuma segurança ou direitos garantidos, muitos têm que se sujeitar à exploração, e alguns chegam a não ser sequer pagos. Conheci demasiadas famílias que trabalharam durante meses em quintas no sul da Turquia, ou em fábricas e restaurantes, e que nunca chegaram a receber nada pelo trabalho. 

Enquanto estava sentada à porta da escola para crianças sírias criada pela organização Revi, um rapaz pára à minha frente e diz que gostava muito da escola, mas agora precisa de trabalhar para ajudar a família e já não pode ir. Tem 11 anos. A infância é demasiado curta em Basmane. 

Uma aula de artes na escola Revi