segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Višegrad: apagar a história

A primeira vez que ouvi falar sobre Višegrad  foi no livro A Ponte sobre o Drina, romance que valeu a Ivo Andrić, escritor jugoslavo, o prémio Nobel da literatura em 1961. Baseado na ponte Mehmed Paša Sokolović, construída pelo império otomano no século XVI em Višegrad, no leste da Bósnia, Andrić conta as histórias dos que lá vivem ao longo dos séculos, os impérios que se vão sucedendo, as pessoas que nascem e morrem, e a ponte que permanece como testemunha silenciosa da história.

Quis visitar Višegrad para ver essa ponte celebrada pela literatura, mas foram outras leituras que me levaram à cidade no leste da Bósnia: relatórios e artigos sobre os crimes lá cometidos durante a guerra entre 1992 e 95.



Nos anos 90, com o desmantelamento da Jugoslávia e o crescimento dos movimentos nacionalistas, a Bósnia, um território multirreligioso e multiétnico, mergulhou em guerra. Nacionalistas sérvios recusaram-se a reconhecer a independência da Bósnia, e apoiados pelo governo de Slobodan Milosevic lutaram para assegurar o território sérvio.

A maioria dos crimes cometidos durante a guerra foram contra bósnios muçulmanos. Uma campanha de limpeza étnica levada a cabo por nacionalistas sérvios no leste da Bósnia foi eficaz em esvaziar o território da presença muçulmana, com assassinatos, violações, tortura e expulsões. Em Srebrenica, 8000 civis muçulmanos foram mortos em apenas alguns dias, em Julho de 1995.

Em Višegrad, uma campanha de limpeza étnica foi eficazmente organizada. Antes da guerra, os muçulmanos constituíam aproximadamente 60% da população de Višegrad, e os sérvios cerca de 30%. Hoje, a população em Višegrad é quase exclusivamente sérvia, a rondar os 95%, e faz parte da Republika Srpska, a entidade sérvia da Bósnia.

Fui a Višegrad à procura dos vestígios da presença muçulmana, e dos crimes lá cometidos. Fui levada pelo interesse na luta por uma memória colectiva, e a cultura de negação dos crimes cometidos por sérvios durante a guerra. Ainda hoje, as autoridades sérvias recusam-se a reconhecer os massacres em Srebrenica como genocídio.

No centro da cidade visitei Andrićgrad, uma pequena vila construída pelo realizador Emir Kusturica em homenagem ao escritor Ivo Andrić: ruas com calçada de pedra, lojinhas de souvenirs, uma igreja ortodoxa. Mas nenhum vestígio da presença muçulmana.

Igreja ortodoxa em Andrićgrad
Caminhei pelas ruas de Višegrad à procura de mesquitas, mas quase todas foram destruídas durante a guerra. Apenas duas foram recuperadas nos últimos anos, mas quando tentei visitá-las encontrei-as vazias. Também tentei visitar o cemitério muçulmano, mas o portão verde estava fechado à chave. Das grades, consegui ler as datas nas lápides brancas: 1992, 1992, 1992.


Cemitério muçulmano : 1992 é a data gravada em grande parte das lápides
Quis visitar um outro sítio, importante no meu roteiro macabro: o hotel Vilina Vlas, um spa que durante a guerra foi transformado num campo de violação. Cerca de 200 mulheres foram presas nos quartos e mantidas como escravas sexuais. Muito poucas saíram do hotel com vida. Depois da guerra, o hotel foi limpo, mas tudo continua igual: os hóspedes dormem nas mesmas camas, nos mesmo quartos. O filme da realizadora bósnia Jasmila Žbanić, For Those Who Can Tell No Tales, é passado neste hotel e baseado na experiência verídica da artista australiana Kym Vercoe como turista na Bósnia. 

Cheguei a Vilina Vlas hesitante. Sei o que aconteceu lá há 20 anos, toda a gente em Višegrad  sabe, mas os hóspedes no hotel caminham com preguiça balnear como se nada tivesse acontecido. Estendem toalhas e fatos de banho coloridos, apanham sol nas varandas de onde as mulheres saltavam para o suicídio: para muitas a única saída, prisioneiras nos quartos e sujeitas a constantes violações e abusos.
Varandas de Vilina Vlas
No hotel tudo está escrito em cirílico, alfabeto usado pelos sérvios, e Danilo, um dos poucos empregados que fala inglês, vem receber-me. Finjo-me interessada na história das águas termais do hotel, nos banhos turcos com 500 anos, e subtilmente vou perguntando pela guerra. Danilo começa a suar, fica nervoso. “Não falamos sobre a guerra. O passado é passado, só olhamos para o futuro”, diz-me. Entretanto, o gerente do hotel vê-me na entrada, a falar com Danilo e a tirar notas no meu caderno. Parece furioso, subitamente alerta, diz alguma coisa em sérvio, e Danilo avisa-me que a conversa acabou, encaminha-me para a porta, diz-me que posso visitar os banhos turcos, mas mostra claramente que tenho que ir-me embora.

No centro da cidade, procuro a rua Pionirska, onde 70 pessoas foram queimadas vivas numa casa, a 14 de Junho de 1992. Passo junto à escola primária Vuk Karadžić, onde prisioneiros eram torturados, e sei que a casa que procuro está perto, mas a falta de placas deixa-me desorientada. Pergunto na rua, e a reacção das pessoas que encontro é a mesma que recebi no hotel. Pionirska? O que procuras em Pionirska? As respostas são ásperas e agressivas, os olhares desconfiados. Só um rapaz com os seus 15 anos falava inglês, e pareceu disposto a ajudar-me. “Pionirska é ali, o que procuras?” ele pergunta. Hesito na resposta, um memorial, eu digo. “Onde sérvios mataram muçulmanos?” ele dispara, sem hesitação. Sim, onde sérvios mataram muçulmanos, mas isso aconteceu por toda a cidade, por toda a Bósnia.

Ele sabe onde fica, diz que pode mostrar-me onde é. Mantém a conversa curta e concisa, diz-me que a família se mudou para Višegrad durante a guerra, e que a mãe vivia numa casa perto do lugar do massacre. “Foi obra do Lukic”, ele diz. Milan Lukic, responsável pelo fogo que matou mulheres, crianças e idosos, foi condenado a prisão perpétua por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Internacional para a Antiga Jugoslávia.


Casa em Piorniska : agora um memorial às vítimas
“Aqui, alguns acham que ele é um herói, outros que é um homem mau”, diz-me o rapaz. Não me atrevo a perguntar o que ele acha, e assim que chegamos à casa que agora é um memorial, ele vai-se embora. A casa é simples, pintada de branco. Na cave, onde 70 pessoas foram trancadas e queimadas vivas, há flores em memória das vítimas. Uma placa com letras douradas assinala o massacre. Milan Lukic era líder do grupo paramilitar Águias Brancas, que aterrorizou a população muçulmana em Višegrad . A longa lista de crimes pelos quais foi condenado inclui o assassinato de centenas de pessoas, tortura, agressão e destruição de propriedade.

A minha visita termina na famosa ponte, a primeira razão que me fez querer vir a Višegrad . Na rua, há comerciantes a vender ímanes e postais, retratos de Ivo Andrić. Caminho lentamente pela enorme ponte branca, e paro no centro. Durante a guerra, homens, mulheres e crianças eram alinhados na ponte, mortos e atirados para o rio. Os corpos eram tantos que o inspector da polícia de Višegrad chegou a receber uma queixa do gestor de uma hidroeléctrica no Drina: "podem por favor reduzir o número de cadáveres mandados pelo rio? Estão a entupir a barragem", conta um jornalista do The Guardian em 1996.

A história repete-se. Em Julho deste ano, descalcei os sapatos junto às margens do Danúbio, em Budapeste, para homenagear os 15 mil judeus que lá foram mortos. Não se sabe ao certo quantos muçulmanos morreram no rio Drina, mas nos anos 90 as águas corriam vermelhas com o sangue. Estima-se que cerca de 4 mil muçulmanos terão sido mortos em Višegrad durante a campanha de limpeza étnica na guerra.


O único memorial das vítimas muçulmanas está na casa Piorniska, que as autoridades locais estão a tentar destruir para a “construção de uma estrada”. Mas no centro da cidade há um enorme monumento aos soldados sérvios que lutaram “pela defesa da República Sérvia”. 


Monumento aos soldados sérvios: uma cruz e uma espada
Em Višegrad não bastou matar e expulsar os habitantes muçulmanos, tentou-se também apagar qualquer vestígio da sua presença.  Hoje, apaga-se a memória com o silêncio. Não se fala da guerra, não se fala do que aconteceu em Vilina Vlas, em Pionirska, ou na ponte. Como se Višegrad sempre tivesse sido sérvia e ortodoxa.

domingo, 20 de setembro de 2015

Sarajevo: múltipla e dividida

Em Sarajevo, vivo num bairro onde há uma mesquita, uma igreja franciscana e uma sinagoga. Se caminhar em direcção ao rio estou a 5 minutos de uma igreja ortodoxa, a poucos metros da maior catedral da Bósnia, e da mesquita Gazi Husrev-begova, a mais representativa da presença otomana em Sarajevo.

Se por vezes me sinto privilegiada por poder caminhar pelas ruas de uma cidade tão diversa, onde posso ouvir simultaneamente a chamada à oração dos minaretes e o tocar dos sinos das igrejas, outras vezes sou confrontada com as paredes esburacadas por balas, e a lembrança da história de divisão e conflito desta cidade.

Antes da guerra, Sarajevo era conhecida como a “Jerusalém da Europa”, uma cidade onde coexistiam diferentes religiões e etnias, e um símbolo de tolerância e coexistência pacífica. Quase todas as histórias que li sobre Sarajevo começam assim, com a nostalgia de uma cidade multicultural e pacífica. Depois surge o conflito, o crescimento dos movimentos nacionalistas, o desmantelamento da ex-Jugoslávia  e depois a guerra fratricida.

Bósnios sérvios opõem-se a bósnios muçulmanos, numa divisão que ainda permanece na cidade. Com a assinatura dos Acordos de Dayton em 1995, acordos entre os grupos étnicos que terminaram a guerra, a Bósnia foi dividida em duas entidades: a Federação, que representa os muçulmanos e os croatas, e a República Sérvia que representa os sérvios. Sarajevo foi dividida em duas administrações locais autónomas: o centro de Sarajevo é parte da federação; o leste da cidade, que emergiu como um bairro suburbano, é integrado na parte sérvia.


Apesar de não existir uma barreira física a dividir as duas partes da cidade, a separação é clara: Sarajevo tem duas estações de autocarros, duas universidades, dois sistemas escolares diferentes. Bósnios muçulmanos (conhecidos como bosníacos) estudam por livros diferentes dos bósnios sérvios, aprendem diferentes versões da história.

Apercebi-me da divisão quando cheguei à cidade vinda de Montenegro, e tive que sair na estação de autocarros do leste, onde chegam todos os autocarros vindos da Sérvia, Montenegro e da parte sérvia da Bósnia. Todos os outros chegam à estação central de Sarajevo.

Bosníacos-muçulmanos, Croatas-católicos e Sérvios-ortodoxos compõem e dividem a Bósnia pós-Dayton, e estes três grupos étnico-religiosos têm sempre que estar representados. Foi definido que a presidência da Bósnia seria tripartida e reservada aos três grupos, que rodam o cargo a cada 8 meses. O sistema político bósnio foi considerado um dos mais complexos do mundo.

Cada grupo tem a sua religião e a sua língua: o Bósnio, o Croata, e o Sérvio, apesar de serem línguas semelhantes, que diferenciam tanto como o inglês britânico do inglês americano. Para fins oficiais, tudo deve estar escrito nas três línguas, mesmo que a frase seja idêntica. Por isso nos maços de cigarros se lê: pušenje ubija, pušenje ubija, pušenje ubija. A Bósnia é o único lugar do mundo onde fumar mata três vezes.
Fumar mata: em bósnio, croata e sérvio
Há pouco espaço para uma identidade simplesmente “bósnia”, para os que não querem ser colocados em nenhuma das três categorias étnico-religiosas, e talvez ainda mais grave, pouco espaço para minorias. A constituição bósnia divide o poder entre os três grupos que têm que estar representados, deixando de fora as minorias. Por isso, foi levada ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2009, por representantes das comunidades judaicas e ciganas, e considerada discriminatória.

Antes da guerra, Sarajevo tinha uma grande percentagem de casamentos interétnicos, não era difícil encontrar numa mesma família várias origens e religiões. No Festival de Cinema de Sarajevo, o realizador bósnio-dinamarquês Vladimir Tomic contou a história de um amigo que vinha de uma família com raízes sérvias e muçulmanas. Durante a guerra foi recrutado simultaneamente pelas forças sérvias e bósnias. “Decidiu fugir de Sarajevo para não ter que disparar contra ele próprio”, disse Vladimir.

Hoje, os casamentos mistos são mais raros. Cada grupo cresce geralmente separado, aprende uma versão da história e tem pouco contacto com “o outro” que vive na cidade vizinha ou no lado oposto da mesma cidade.

 “Quando falamos sobre a guerra há sempre conflito, cada um tem a sua versão da história e não nos entendemos”, disse-me Strahinja, bósnio sérvio que vive no leste de Sarajevo e estuda Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade de Sarajevo. “Mas quando estamos em festas ouvimos e cantamos as mesmas músicas, somos todos irmãos.”

domingo, 6 de setembro de 2015

Bósnia: chegar a Sarajevo

Cheguei a Sarajevo a meio de Agosto, mas demorei muito tempo a escrever as primeiras palavras sobre a cidade onde ficarei a morar nos próximos meses. Sarajevo é difícil de descrever. Cada dia esta pequena cidade apertada entre as montanhas me parece diferente. As cores parecem mudar, há novos pormenores em que reparo. Sarajevo é misteriosa, estende-se ao longo do rio, vagarosa.

Cheguei a carregar o fardo de tudo o que tinha lido e visto sobre a cidade antes de a visitar pela primeira vez: a “Jerusalém da Europa”, a guerra entre 1992 e 95, o mais longo cerco da história moderna. Com o desmantelamento da antiga Jugoslávia, a Bósnia, onde muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos coexistiram durante séculos, entrou em guerra. Entre 1992 e 1995 cerca de 100 000 pessoas foram mortas. O cerco de Sarajevo por tropas sérvias durou 1 425 dias. Envolveu artilharia pesada e disparos sobre todas as cabeças: mulheres, crianças, e até animais domésticos.

Durante dias vivi a cidade a partir dessas imagens e números, que vinham sempre assombrar-me com evocações guerra. Ao olhar as montanhas que rodeavam a cidade não via a sua beleza, mas pensava nos snipers que lá se escondiam há 20 anos. Nas ruas não via as fachadas coloridas do período austro-húngaro, ou a influência otomana do bairro antigo de Baščaršija, mas os buracos de balas e bombas nas paredes, deixados abertos como feridas que não saram.


Via homens amputados nas ruas, e lembrava-me de ler que tantos braços e pernas eram cortados com serras, muitas vezes sem anestesia. Observava as pessoas sentadas no eléctrico que percorre a cidade ao longo do rio, e perguntava silenciosamente com o olhar: onde estavas há vinte anos? 

Durante a guerra, Sarajevo era uma cidade sem gatos e sem árvores. Só havia cães esfomeados a vaguear pelas rua porque os donos fugiam da cidade ou não podiam alimentá-los. Por isso, os cães devoravam os gatos que restavam. As árvores eram cortadas para queimar lenha durante os cortes de electricidade, ou para que as famílias conseguissem aguentar o frio no inverno. Às vezes eram usados livros para fazer fogueiras. Pergunto-me que escritores terão aquecido as noites mais frias.

Mas em Sarajevo já há gatos e árvores. Há ameixeiras e salgueiros a crescer junto ao rio. Há toda uma cidade que vive e que vibra, que consegue encontrar piadas sobre a guerra e rir sobre os piores momentos. “O sentido de humor era a única coisa que nos restava”, disse-me Alija, um Bósnio que conheci numa livraria no centro da cidade, e que vive em Chicago, onde há um grande número de imigrantes bósnios. Alija visita Sarajevo todos os anos no Verão, não só pelas memórias que o ligam à cidade onde cresceu e à família que ainda cá vive, mas pela beleza de Sarajevo que sempre o surpreende e aconchega. 

Sarajevo vive para além da guerra, mesmo que o turismo na cidade gire em torno dos tours do cerco e dos snipers, dos museus e galerias sobre massacres, das souvenirs da guerra. No bairro mais turístico vendem-se canetas feitas com balas, porque escrever é uma arma, e porque Sarajevo se reescreve. 

Canetas feitas a partir de balas

A minha primeira semana na cidade foi caótica, passada a "trabalhar" no festival de cinema de Sarajevo, que enche a cidade de movimento. Vi dezenas de filmes, entrevistei realizadores e conheci pessoas do mundo inteiro, do México a Singapura. Conheci Danijel, de Banja Luka, no norte da Bósnia, e juntos vimos vários filmes. O favorito de Danijel foi um documentário sobre as florestas bósnias, que entediou a maioria dos espectadores internacionais, mas para ele foi o melhor documentário sobre a Bósnia, “porque não era sobre a guerra”.

Ao final da tarde, subimos até um dos miradouros da cidade para ver o pôr-do-sol. Tons dourados preenchiam o céu, andorinhas voavam junto ao rio, e enquanto se ouvia a chamada para a oração vinda das várias mesquitas de Sarajevo, uma paz surpreendente instalava-se sobre a cidade, num desses momentos que tornam um lugar inesquecível. Sarajevo é assim: cativante, misteriosa com todas as suas cicatrizes. 

Já há gatos em Sarajevo