quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Kosovo: de onde vens?

Para chegar ao Kosovo do sul da Sérvia tive que apanhar quatro autocarros e dois táxis. Gastei quase dez horas, sentada em autocarros abafados e rodoviárias poeirentas, para percorrer pouco mais de 300 km.
Parecia simples, ir de Guča, a pequena aldeia sérvia que em Agosto entra em festa com o famoso festival de trompetes, para Pristina, no Kosovo, que no mapa parece tão perto. Mas nada nos Balcãs é assim tão simples, e cidades que no mapa parecem próximas podem estar radicalmente distantes, como acontece entre a Sérvia e o Kosovo.

Festival Guča
De Guča, onde passei alguns dias cacofónicos (e incrivelmente divertidos), a ouvir Goran Bregovic e a ser regada com cerveja e rakija, apanhei um autocarro para Čačak, e de lá para Kraljevo, onde deveria ser fácil encontrar um transporte para o Kosovo. Mas na estação de autocarros disseram-me que não havia nenhum transporte directo da Sérvia para Pristina, e que teria que apanhar um autocarro para Mitrovica, cidade dividida entre uma parte sérvia no norte, e uma parte albanesa/kosovar no sul.

Em 2004, a violência entre a comunidade sérvia e a comunidade albanesa reacendeu no Kosovo, e Mitrovica foi um dos principais palcos dos conflitos. Apesar de grande parte da cidade ter sido reconstruída, ainda tive a sensação de estar a entrar num campo de batalha, com tanques a patrulhar as ruas e bandeiras a cada 10 metros a separar os limites da cidade: o norte com bandeiras sérvias, e o sul com bandeiras albanesas.

Quando cheguei à estação sérvia de Mitrovica tive que negociar com os taxistas a viagem de 10 minutos para o lado albanês, para poder apanhar um autocarro na estação albanesa para Pristina. O taxista que me levou argumentou que era perigoso entrar com uma matricula sérvia na parte sul, o vidro do táxi estava partido. Mas lá aceitou levar-me, sempre com o pé no acelerador. 

Cheguei a Pristina ao final da tarde. O dia que tinha começado com um autocarro apanhado às 9 da manhã na Sérvia já estava no fim, e os hostels da cidade estavam todos cheios. Foi a simpatia de estranhos que me salvou, desta vez porque num dos hostels me deixaram ficar a dormir no sofá sem pagar nada.

Pristina
No meu primeiro almoço em Pristina comi falafel e pão pita, num jardim onde pétalas de flores caídas das árvores iam preenchendo a mesa, o meu colo, o prato. O empregado perguntou-me de onde eu vinha, e pôs a tocar um álbum de Mariza antes de trazer a refeição. Flores, Mariza e falafel: Pristina é uma cidade inusitada.  

"De onde vens", é a primeira pergunta que todos fazem, mesmo que me tenha dirigido a alguém só para pedir direcções ou para perguntar onde são os correios. “De onde vens?”, pergunta-me um homem que me vê a caminhar na rua de mochila às costas. Parece satisfeito quando ouve Portugal. “É um bom país”, diz-me, “reconhece-nos”, ao contrário da vizinha Espanha. 

Chamava-se Skender, era engenheiro electrotécnico e vinha de uma aldeia perto de Peja, cidade próxima da fronteira com o Montenegro. A declaração de independência do Kosovo, em 2008, foi reconhecida por mais de 100 países, mas a Sérvia, e países como a Espanha, a Rússia e a Grécia ainda não a aceitam, vendo o Kosovo como parte da Sérvia. 

Falei ao Skender das minhas viagens, e ele ouviu com curiosidade, mas mostrou pouco interesse em viajar. É no Kosovo que quer estar, e dos outros países só espera o reconhecimento. "Espero que um dia todos reconheçam o Kosovo como um país independente", disse-me antes de nos despedirmos. Para ele seria melhor do que conhecer todos os outros países do mundo. 

Entrada de uma igreja e ao fundo mesquita em Prizren, no sul do Kosovo

sábado, 15 de agosto de 2015

Budapeste Judaica

Na minha última entrada falo sobre como os estranhos nos podem surpreender com actos de bondade desinteressada. Mas em Budapeste também me deparei com a crueldade. A absoluta crueldade que se pode dirigir a desconhecidos, sem nome ou rosto, só porque pertencem à religião ou etnia errada.

O turista que passeia pelas margens do Danúbio junto ao Parlamento Húngaro depara-se com um memorial das vítimas do partido húngaro nazi. Em 1944, cerca de 15 mil pessoas foram mortas, quase todos por serem judeus. Muitas eram alinhadas junto ao rio, obrigadas a tirar os sapatos, e mortas. O Danúbio levava os corpos.




Naquela altura o Danúbio não era azul, mas vermelho. Vermelho com o sangue dos judeus”, escreveu Eva Bentley, sobrevivente húngara do Holocausto. Can Togay e Gyula Pauer criaram o memorial em 2005: 60 sapatos espalhados pelas margens do rio, como se tivessem sido acabados de tirar. Com os meus, 61. 



Registos da presença judaica na Hungria remontam ao século IX, acompanhados também por uma longa história de anti-semitismo. Durante a peste negra os judeus foram expulsos do país, eram frequentes os libelos de sangue e as expulsões. No início do século XX a comunidade judaica na Hungria era uma das maiores da Europa, e estava relativamente bem integrada. Os judeus ocupavam posições de prestígio na ciência, arte e comércio, e em Budapeste constituíam cerca de 20% da população.

Nos anos 20, leis anti-semitas começaram a ser aprovadas, e a posição dos judeus húngaros foi piorando com o alinhamento da Hungria à Alemanha nazi. Leis anti-semitas semelhantes às nazis foram aprovadas, e em 1941 começaram a ser deportados judeus sem nacionalidade. Em 1944 inicia-se a deportação massiva de judeus húngaros para campos de concentração. No Holocausto houve cerca de 500 mil vítimas húngaras, número que só é ultrapassado pelas vítimas polacas e russas.

A comunidade judaica em Budapeste ainda é uma das maiores da Europa, mas o anti-semitismo ainda é uma realidade. Recentemente, na Hungria, tem-se assistido a um ressurgimento de ondas anti-semitas. Em 2013, um relatório publicado pela Agência Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA) revelou que 90% dos judeus húngaros inquiridos sente que o anti-semitismo é um problema na Hungria, e que 43% viu outros judeus a serem insultados ou agredidos. O partido húngaro de extrema-direita, Jobbik, conhecido pelas declarações racistas e anti-semitas, foi o terceiro mais votado nas eleições do ano passado.

Li as memórias de Imre Kertész, sobrevivente húngaro do holocausto e e prémio Nobel da literatura, com um aperto no estômago. Já sabia de tudo: os guettos, os disparos no Danúbio, Auschwitz... mas nunca se sabe realmente. Nunca entendi como tudo isso pode acontecer, como se pode guardar tanto ódio e desprezo por uma massa desconhecida, sem nome e sem rosto, da qual só se distingue a estrela amarela.

Caminhei pelas ruas de Budapeste, onde a presença judaica ainda é muito visível, sem nunca conseguir entender.