segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Holanda, a tradição e a "ressaca colonial"

Quando me mudei para a Holanda há uns meses atrás achei que estava a mudar-me para um país progressivo, considerado um dos países mais avançados em termos de direitos, liberades e tolerância, sempre no topo dos rankings de progresso social. 

Quando Dezembro começou a aproximar-se, foi com choque que comecei a ver inesperadas caricaturas racistas em montras de lojas espalhadas um pouco por toda a cidade. Amigos holandeses explicaram que se tratava do Zwarte Piet, em português o "Pedro Negro", uma figura do folclore holandês. Segundo a tradição holandesa, o Pedro Negro é o ajudante de São Nicolau, que em Dezembro vem aos Países Baixos distribuir doces e prendas às crianças.


Vestido com trajes renascentistas, para muitos uma clara referência ao colonialismo e escravatura do Império Holandês, esta figura não incomoda a maioria dos holandeses. Em desfiles durante o final de Novembro e o início de Dezembro, as ruas estão cheias de holandeses que pintam a cara de preto, desenham enormes lábios vermelhos, põe perucas crespas e vestem o traje do Pedro Negro, o ajudante apalermado de São Nicolau.



Nos últimos anos, a sociedade holandesa tem debatido esta tradição que é vista no exterior como ofensiva e racista. Em 2015, as Nações Unidas pediram o fim da caricatura do Pedro Negro, "retratado de forma a reflectir estereótipos negativos de pessoas com ascendência africana, e visto por muitos como um vestígio da escravatura". Mas a maioria da população holandesa não vê no Pedro Negro uma figura racista, e resiste a mudar a tradição, descrita num documentário recente como uma assutadora "ressaca colonial".



Quando o desfile veio a Leiden, a pequena cidade universitária onde estou a viver, decidi juntar-me a um grupo de activistas locais para protestar contra as representações racistas. Naomi, uma activista holandesa com raízes afro-caribenhas, disse-me que a tradição sempre a fez sentir desconfortável. "Na escola sentia-me sempre muito desconfortável nesta altura do ano", disse. "Sentia-me diferente, achava que não era normal. Sentia-me mal. Na altura era muito nova e não sabia o que era racismo. Mas depois começei a ler, a fazer pesquisa sobre racismo, privilégio branco". 




Nos últimos anos a opinião pública tem vindo a mudar lentamente, "mas porque é que tem que demorar tanto?" pergunta Naomi. Somos cerca de 30 activistas, num canto da rua principal de Leiden, rodeados de barreiras de metal e polícia, enquanto várias centenas de pessoas se juntam para ver o desfile. Não podemos sair da zona fechada que nos foi destinada para protestar, vedada para nos proteger de um grupo de extrema-direita que nos ameaçou e confrontou. "Acho que querem silenciar-nos", diz Naomi.



Os nossos cartazes são quase invisíveis no pequeno canto vedado, enquanto a multidão aplaude o desfile de caricaturas: caras pintadas de negro, gigantescos lábios vermelhos, perucas apalhaçadas, argolas de ouro e trajes renascentistas que já estão enraizadas no imaginário holandês. Mas outras figuras, mais chocantes e assustadoras, também aparecem: crianças loiras com as caras pintadas de negro, perucas negras com ossos presos nos caracóis crespos, e tecidos com padrão de leopardo, como a mais ofensiva e ultrajante caricatura imaginável. 



Ghaled, um dos organizadores do protesto, diz-me que se preocupa especialmente com o impacto que estas representações podem ter nos mais novos. "É muito mau para as crianças. Não só as crianças negras, mas todas as crianças" que crescem com estas imagens, diz-me. Logan, um professor americano a viver na Holanda há quatro anos que também participa na manifestação, concorda que a imagem do Pedro Negro é "terrível" para os mais novos, especialmente quando "a única imagem que se vê é um estereótipo".



Alguns holandeses reagem com hostilidade aos nossos cartazes, confrontam-nos para nos dizer que o Pedro Negro não é racista. Para Logan, não cabe ao holandês branco decidir o que é ou não racista. Diz-me compreender "que tradições e crenças profundamente enraizadas sejam difíceis de mudar" e que aceitar que a figura que faz parte da infância dos holandeses é racista pode ser difícil para muitos. Mudar uma tradição enraizada pode ser difícil, mas espanta-me a maneira como alguns holandeses zangados vêm gritar connosco para nos dizer que não temos razão, incapazes de admitir que muita gente se pode sentir ofendida com a tradição.

Os defensores mais tenazes do Pedro Negro dizem estar a defender a "nossa" tradição, e que os imigrantes e filhos de imigrantes (muitos nascidos e criados na Holanda) não têm o direito de mudar a "nossa" tradição. O debate não é só sobre a negritude do Pedro Negro, mas também sobre a brancura da sociedade holandesa. Sobre quem tem poder para decidir o que é a tradição, e como deve ser representada. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Infância interrompida: fotografias tiradas por crianças sírias

A vida para os refugiados sírios na Turquia é especialmente difícil para as crianças. Forçadas a deixar as suas casas, a interromper os estudos, e a adaptar-se a condições difíceis de instabilidade e vulnerabilidade, as crianças sírias têm que crescer demasiado rápido.


Crianças com menos de doze anos trabalham doze horas por dia, seis dias por semana, para ganhar um salário muito abaixo do salário mínimo na Turquia, essencial para sustentar as famílias.

“Trabalho numa máquina de costura dez horas e meia por dia, seis vezes por semana. A minha mãe era professora na Síria e eu era um aluno muito aplicado. Sinto muito falta da escola, mas agora tenho que trabalhar. O meu pai está na Alemanha, e a minha família ainda está à espera para se juntar a ele. Quando conseguirmos ir para lá espero poder continuar os meus estudos.”
-Ahmed, 13 anos


De acordo com a Unicef, mais de metade dos 2,7 milhões de refugiados sírios registados na Turquia são crianças, e só 20% está a frequentar uma escola formal. Apesar do governo turco ter concedido a crianças sírias o acesso a escolas públicas, a grande maioria não pode usufruir da educação a que tem direito devido a barreiras linguísticas, dificuldades económicas e falta de informação e de integração.

“A minha vida aqui não é boa. A língua turca é difícil e eu não consigo aprender. Somos sírios e [os turcos] tentam envergonhar-me. Querem que sinta vergonha por ser da Síria. Mas eu não tenho vergonha, nunca! Tenho orgulho de ser síria. Há tantas crianças turcas que não provocam… gritam palavras feias. Deixa-me muito zangada. Não quero ficar aqui. O meu único sonho é voltar para casa. Não quero mais nada.”
- Aisha, 10 anos


Muitas crianças não vão à escola por não falarem turco, ou porque tem dificuldades em integrar-se. Para combater este problema a Revi, um grupo de voluntários internacionais e locais, abriu três escolas para mais de 100 crianças na cidade costeira de Izmir, onde vive um grande número de refugiados sírios. A Revi conseguiu contractar cinco professoras sírios da comunidade, e dar aulas de turco e inglês, para além de desenvolver projectos de integração.


No Verão de 2016, ajudei a Revi a organizar um workshop de fotografia para crianças sírias a viver em Izmir. Demos máquinas descartáveis a várias crianças e pedimos que fotografassem o seu bairro. Os resultados foram surpreendentes: um olhar comovente sob a vida no bairro sírio de Izmir, com as suas ruínas e edifícios decrépitos, mas também com os seus mercados coloridos que vendem produtos de Alepo, um vendedor de algodão doce e até um raio de sol a iluminar um beco.



“Estava a estuda na Síria e queria continuar a ir à escola, mas por causa da guerra não pude. Estou a estudar aqui, mas não estou feliz. Não quero ver crianças sem poderem ir à escola, ou a chorar. Chega de guerra… não quero ver pessoas com armas.”
- Nadia, 10 anos


“Vi morte, sangue, violência mesmo à minha frente. Era tudo tão difícil. No início tinha medo de tudo, mas o que vi deu-me força. Tenho muita esperança na Síria. Acho que vai voltar ao que era antes da guerra. E como eu, as coisas terríveis que a Síria viu vão tornar o país mais forte.”
- Aisha, 10 anos


“O meu trabalho é a costura. A maioria dos sírios que estão a viver na Turquia trabalha nesta área. Passamos a maior parte do tempo a trabalhar. Não sinto satisfação, mas tenho que o fazer. Estou sozinho aqui, a minha família ainda está na Síria, falamos uma vez por mês. Já estou aqui há nove meses, tenho tantas saudades…”
- Mahmoud, 15 anos



A Revi está a receber donativos que ajudem a apoiar as suas escolas e o programa “Work to School”

(Todas as fotografias foram tiradas por crianças sírias em Izmir, na Turquia)