sexta-feira, 22 de julho de 2016

"Afinal, quem fala hoje da aniquilação dos arménios?"

Cheguei à Arménia vinda da Geórgia, e apesar de apenas algumas horas ligarem as capitais dos dois países, a viagem por estradas montanhasas levou-me a um país com uma cultura, língua, e até um alfabeto completamente diferentes. 

Yerevan, a capital arménia, é uma cidade rosa. Um passeio pelo centro da cidade, onde avenidas recentemente construídas estão cheias de lojas de marca e restaurantes gourmet, com os seus edifícios de pedra vulcânica em vários tons de rosa, encontram-se poucos vestígios da história negra que marca o país.


Yerevan, cidade rosa

"Afinal, quem se lembra hoje da aniquilação dos arménios?", perguntou Adolf Hitler num discurso feito em 1939, pouco antes de começar o extermínio sistemático dos judeus europeus, que veio a ser conhecido como genocídio. O Holocausto foi reconhecido por quase todo o mundo, negá-lo é um crime em vários países, mas a perseguição e o extermínio de cerca de um milhão e meio de arménios pelo império otomano só é oficialmente reconhecido por alguns, e continua a ser negado pela Turquia.

Entre 1915 e 1922, líderes do governo turco levaram a cabo uma campanha de extermínio,  violação, deportação e pilhagem contra a minoria arménia no Império Otomano. Numa primeira fase, as populações arménias foram massacradas e o seu património pilhado e destruído, com aldeias e vilas inteiras a serem apagadas do mapa. Depois da execução de rapazes e homens, seguiu-se a deportação de mulheres, crianças e idosos em marchas de morte até ao deserto sírio.



No Museu do Genocídio Arménio 

"Violações e espancamentos eram comuns. Os que não eram imediatamente morto eram levados pelas montanhas e desertos sem comida, bebida ou abrigo. Centenas de milhares de arménios eventualmente sucumbiram ou foram mortos", escreve o historiador David Fromkin num livro sobre a queda do Império Otomano.

Para marcar os 100 anos dos massacre, a Arménia escolheu a flor não-me-esqueças como símbolo do genocídio que o resto do mundo parece ter esquecido. 


Não-me-esqueças - a flor símbolo do genocídio arménio

Mesmo Israel, que prometeu "nunca esquecer" o Holocausto, é um dos muitos estados que não reconhece o genocídio arménio, apesar de ter uma população de cidadãos arménios descendentes de sobreviventes do genocídio a viver em Jerusalém, onde há um bairro arménio dentro das muralhas da cidade antiga. Os cidadãos arménios de Israel vêem com amargura a memória selectiva do governo israelita.

Na Turquia, a negação é sistemática. O que aconteceu em 1915 é diluído no contexto da guerra, e o termo genocídio é sistematicamente negado. As conclusões dos historiadores são rejeitadas, e questionar sequer o que aconteceu com a população arménia pode levar a penas de prisão. Em 2005, o escritor Orhan Pamuk foi levado a tribunal por ter referido o extermínio dos arménios numa entrevista a um jornal suiço. 



Mosteiro arménio
Falar do genocídio arménio seria questionar os mitos nacionais da fundação da Turquia, e enfrentar uma história negra de limpeza étnica e violência. Seria questionar os símbolos nacionais, o processo de "turquificação" que apagou o passado multiétnico e multicultural da Anatolia.

Para os arménios, a memória da perda e o trauma do genocídio tornaram-se parte integrante da identidade nacional. Não-me-esqueças, diz a flor que se encontra por todo o país.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Geórgia: um alfabeto de pássaros e uma revolução de flores

De um lado a costa do mar Negro, do outro montanhas verdes envoltas em nevoeiro, na estrada que liga o norte da Turquia à Geórgia. As montanhas continuam ao longo da estrada que atravessa a Geórgia até chegar a Tbilisi, a capital deste país que não fica bem na Europa nem na Ásia, mas no cruzamento este-oeste.



Apesar de ser maioritariamente cristã-ortodoxa, a cidade acolhe a diversidade étnica e religiosa, e no centro histórico a sinagoga fica ao lado da mesquita, num país que tem uma das mais antigas comunidades judaicas do mundo, e uma mesquita onde sunitas e xiitas rezam juntos. 

"Na Geórgia, não queremos saber se és sunita ou xiita, é a mesma religião. Se vens para rezar és bem-vindo, esta é uma casa de deus, uma casa para toda a gente", diz-me Rafid Radih, um professor islâmico iraquiano, a ensinar na mesquita de Tbilisi há quase 10 anos. "Queremos ter sinagogas e igrejas na vizinhança, aceitamos toda a gente". 



Rafid mostra-me a mesquita centenária com orgulho. Mostra-me um alcorão de 400 anos, e a biblioteca onde o livro islâmico foi traduzido em seis línguas diferentes. Enquanto caminhamos silenciosos, com os pés descalços a roçar os tapetes macios, um grupo de homens reza, e só a diferença nos gestos denuncia a pertença a sectos diferentes. Um livro de Kafka foi deixado num canto de um tapete, e um homem deitado descança do calor do início de verão. As portas da mesquita estão sempre abertas.

Em deambulações pela cidade, o que mais me deslumbra não é a mistura de estilos arquitectónicos, do neoclássico e art nouveau ao soviético brutalista, ou as varandas pitorescas do centro histórico, mas os sinais e cartazes com o alfabeto georgiano. Os georgianos utilizam um alfabeto único, inventado no século V, e todas as letras me parecem pássaros: cisnes, beija-flores em voo, gaivotas a bater as asas.



Descobri que, como Portugal, a Geórgia também teve uma revolução com flores, mas em vez de cravos usou rosas para derrubar um governo autoritário e corrupto. Em 2003, eleições consideradas fraudulentas reelegeram Edvard Shevardnadze como presidente, despertando protestos por todo o país.

Durante semanas, milhares participaram em protestos pacíficos para exigir a demissão do presidente, considerado ilegítimo, e novas eleições. As forças militares reunidas para controlar a multidão foram recebidas com flores e abraços, enquanto protestantes tocavam música e dançavam na principal praça de Tbilisi. No dia 22 de Novembro protestantes invadiram o parlamento com rosas. Shevardnadze anunciou a sua demissão pouco depois.