sábado, 31 de outubro de 2015

Mostar: os estilhaços por reunir

Mostar está na capa de todos os guias turísticos da Bósnia, com a sua famosa ponte construída pelo império otomano no século XVI. O rio Neretva que atravessa cidade rodeada de montanhas e o belo centro histórico fazem de Mostar um dos mais atraentes pontos turísticos da região, mas nada me preparou para a invasão massiva do turismo que vi na cidade. Pelas ruas estreitas de calçada de pedra, lojinhas vendiam as mesmas souvenirs produzidas em massa, os mesmos lenços pashmina e ímanes e postais coloridos com a ponte reproduzida mil vezes.


Grupos de turistas em excursões da Croácia enchiam as ruas e tornavam difícil caminhar, gravitando em torno da bela ponte arqueada. Rapazes em fato de banho pediam dinheiro para saltar da ponte, fazendo circular chapéus para recolher as moedas. 

Um mergulhador prepara-se para saltar da ponte
Mas a ponte, que dá nome à cidade (most significa ponte em bósnio), nem sempre se ergueu assim majestosa. Entre 1992 e 95, os conflitos entre muçulmanos e croatas fizeram de Mostar um campo de guerra, uma das cidades mais bombardeadas no país. A ponte foi destruída por nacionalistas croatas em Novembro de 1993. Foi reconstruída em 2004, mas as divisões na cidade persistem.

Mostar permanece uma das cidades mais divididas da Bósnia: o oeste é muçulmano e o leste croata. A cidade tem duas companhias de electricidade, duas redes de telefone, dois serviços de correios, duas universidades. Crianças croatas e crianças muçulmanas vão a escolas separadas, e aprendem a partir de livros diferentes, diferentes versões da história.

Mas nem sempre foi assim. Antes da guerra Mostar, era considerada uma das cidades mais multiculturais da Bósnia, e um símbolo de tolerância e coexistência pacífica. A família de Romana, uma das minhas colegas de trabalho, era de Mostar. O pai é muçulmano, a mãe é croata e sérvia. Antes da guerra, Mostar tinha o maior número de casamentos mistos do país.

Ninguém sabe explicar bem onde correu mal, ou como os movimentos nacionalistas trouxeram discursos de ódio, e puseram vizinhos e amigos a lutar uns contra os outros, mas os vestígios da guerra ainda são muito visíveis.

Portão baleado em Mostar
A destruição foi planeada em grande escala: os tanques apontavam para as mesquitas, as igrejas, os museus e biblioteca. Apontavam para o património cultural. No alvo estavam os lugares simbólicos, e o objectivo era para apagar a memória do que a cidade foi, ao ponto de se falar de um urbicídio: matavam Mostar lentamente.

Brisko é conhecido por todos na cidade como o homem que atravessou a ponte pela última vez antes de ser destruída. Estava a atravessar a ponte para levar água para a família quando granadas começaram a ser atiradas. “Não consigo compreender o facto de ter experienciado isso e sobrevivido. Imagino o que terei feito para que deus me tenha salvo”, diz-me, quando nos encontramos junto à ponte. 

Brisko caminha comigo pela nova ponte, agora cheia de turistas. Mostra-me o lugar onde caiu a primeira granada, e diz-me que pensou que ia morrer na ponte e cair com ela nas águas do rio Neretva. Correu o mais rápido que pôde, e quando chegou ao fim da ponte estava coberto de pó branco. “Não tinha nem um arranhão, mas estava tão branco como um moleiro”.

Brisko Corda, o último homem a atravessar a ponte
Mas Brisko diz-me que apesar de não se ter ficado ferido, sente que uma parte dele também caiu com a ponte. “Não só uma parte de mim mas de todos os que nasceram em Mostar e sentiram que a ponte fazia parte das suas vidas”, diz.

Mas nem só os que nasceram em Mostar choraram pela destruição da ponte que se ergueu por mais de 400 anos. Por toda a Bósnia e pelos Balcãs, adultos choraram a queda da ponte otomana. E até os que nunca a viram ao vivo sentiram o desastre da sua destruição.

“Esperamos que as pessoas morram, mas a ponte, com toda a sua beleza e graciosidade, foi construída para viver mais que nós: era uma tentativa de alcançar a eternidade”, escreveu Slavenka Drakulić, jornalista croata, numa crónica que lamenta a destruição da ponte que nunca chegou a atravessar.


Apesar da ponte ter sido reconstruída com fundos da Unesco em 2004, Mostar ainda é uma cidade dividida. Muitas crianças croatas que vivem no leste da cidade crescem sem nunca ter sequer atravessado a ponte histórica, que fica no lado muçulmano, a oeste.

Se por um lado o centro está saturado de turistas, por outro Mostar ainda é uma cidade com ruínas, fachadas destruídas e feridas da guerra que não sararam. É uma cidade cheia de estilhaços por reunir.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A saudade bósnia e a jugo-nostalgia

Foi numa segunda-feira à noite, num bar que era antes um cinema, que descobri a saudade na Bósnia. Todas as segundas, o bar Kino Bosna, no centro de Sarajevo, recebe músicos que tocam Sevdah, a música tradicional da Bósnia e Herzegovina. Envolta em nuvens de fumo de cigarro, ouvi os músicos cantar melodias melancólicas que me lembraram o fado. Com guitarras e um acordeão, cantavam sobre amores perdidos, desejos frustrados… e eu ouvia surpreendida, a imaginar as mesmas músicas com guitarras portuguesas a ecoar nos becos de Lisboa.

Kino Bosna em Sarajevo
Mais tarde, descobri que as semelhanças são mais profundas. A palavra Sevdah vem do árabe sawda (bílis-negra), raiz que também deu origem à palavra saudade. Saudade-Sawda-Sevdah. Ali estava eu, num bar que tinha saudades de ser cinema, a ouvir fados à moda da Bósnia, regados com rakija e envoltos em fumo. Os músicos rodavam a sala, tocando de mesa em mesa, e dezenas de vozes juntavam-se para cantar as mesmas canções.

Na língua bósnia não existe uma palavra para saudade. A melhor tradução é nostalgija. Mas a saudade faz parte do vocabulário de cada bósnio, em especial a saudade dos tempos anteriores à guerra.

Conheci Sanja, uma professora de inglês, num café no centro de Sarajevo. Simpática e faladora, Sanja mostrou-me uma fotografia do pai, segundo ela um importante general, a apertar a mão de Tito. Falou-me com orgulho do pai, da admiração por Tito, e da nostalgia dos tempos dourados da Jugoslávia.
Yugo: o carro produzido na Jugoslávia
“É pena que sejas tão nova”, disse-me Sanja. “Se pudesses viver em Sarajevo um só dia nos tempos antes da guerra…”, suspirou. “Era maravilhoso. Tínhamos um grande país”.

Que tudo era melhor antes da queda da Jugoslávia é algo que já tinha ouvido antes várias vezes, mas nunca dito com tanta sinceridade e emoção. A Jugo-nostalgia é um fenómeno recorrente nos países da antiga Jugoslávia. Mas para os bósnios, os que mais sofreram com o desmantelamento da Jugoslávia que levou o país a uma longa e violenta guerra, a jugo-nostalgia vem misturada com os sentimentos de perda e melancolia da saudade.

“Tudo era melhor antes da guerra”, diz-me Strahinja, estudante de Ciência Política, apesar de ser demasiado novo para se lembrar de como era. “A cultura, a economia… tudo piorou depois da guerra”. Strahinja prefere a música e os filmes da antiga Jugoslávia. Mesmo entre os que já nasceram numa Bósnia dividida pela guerra, permanece a nostalgia de um país próspero, multicultural e pacífico, a Jugoslávia de Tito.

Josip Broz Tito, líder da resistência anti-fascista dos Partisans, assumiu o poder da federação jugoslava no final da Segunda Guerra Mundial. Tito governou sobre o lema “irmandade e unidade”, suprimindo os movimentos nacionalistas para manter unida uma Jugoslávia multiétnica e multirreligiosa. Foi reeleito cinco vezes, e nomeado “presidente vitalício”.  Depois da sua morte, em 1980, o crescimento dos movimentos nacionalistas levou à luta pela independência das repúblicas e à dissolução da Jugoslávia.

Yu-café; retratos de Tito
Em Sarajevo, um bar foi dedicado a Tito, e no Yu-café, a jugo-nostalgia enche as paredes de retratos do presidente e bandeiras da Jugoslávia. Também há o hostel Tito, e a avenida Marshal Tito ainda é uma das mais movimentadas da cidade.