quinta-feira, 17 de março de 2016

No deserto do Negev

Na minha viagem até ao deserto do Negev, no sul de Israel, não tive tempo para visitar as atracções que os guias turísticos apontam como imperdíveis. Não visitei as impressionantes crateras vulcânicas, nem as minas do rei Salomão, nem as ruínas romanas e bizantinas. Interessei-me mais pelas ruínas por acontecer: a demolição de aldeias e o deslocamento das comunidades beduínas que lá vivem.

Em Umm al-Hiran, uma menina beduína sentada no chão da sua aldeia brincava com terra, a terra que em breve terá de deixar. Todos os habitantes da aldeia receberam ordens de despejo e de demolição das suas casas, para que uma vila judaica seja construída nas ruínas.

Em Umm al-Hiran uma menina brinca com a terra que vai ter que deixar

“Não se pode tirar uma pessoa do seu lugar para trazer outra pessoa,” diz Ahmad Abu Qian, residente em Umm al-Hiran. “Não posso aceitar isto. Há tanto espaço no deserto!”, exclama. Os beduínos têm cidadania israelita e compõem cerca de um terço dos habitantes do deserto de Negev, mas as suas aldeias ocupam menos de 3% da área, e apenas algumas são reconhecidas pelo governo.

Localizada a 20 quilómetros de Be’er Sheva, a maior cidade do Negev, Umm al-Hiran é habitada por cerca de 500 membros da tribo beduína al-Qian. A aldeia foi estabelecida em 1956 por ordens militares, depois da comunidade beduína ter sido expulsa das suas terras com a criação do estado de Israel.  

Ahmad senta-se junto da mesquita da aldeia e conta a história da sua tribo, que chegou ao Negev no século XIX. Quando foram transferidos para Umm al-Hiran por ordens militares nos anos 50, não tinham nenhuma fonte de água. “Seis homens iam com camelos e ovelhas buscar água de manhã, e voltavam ao anoitecer”, conta. O acesso mais próximo ficava a quase 20 quilómetros de distância.

Hoje, Umm al-Hiran ainda não tem água canalizada (os pedidos da aldeia para serem ligados aos canos de água mais próximos foram rejeitados), electricidade ou serviços de saúde. Tal como as cerca de 40 outras aldeias beduínas não reconhecidas pelo governo israelita, e por isso consideradas “ilegais”, a aldeia não recebe os serviços mais básicos. A água vem em tanques da cidade mais próxima, e os residentes da aldeia usam painéis solares para terem energia. 

Um cartaz anuncia a construção da vila judaica
 “Se Israel fosse uma democracia não tratava assim os seus cidadãos”, diz Ahmad. Ele aponta para uma quinta próxima da aldeia, onde vive uma família judaica que, ao contrário das centenas de famílias beduínas que vivem nas proximidades há décadas, recebe água, electricidade e serviços de saúde fornecidos pelo governo.

Os planos para a construção da vila destinada a ser habitada por famílias judaicas estão a ser discutidos há mais de uma década, marcada por uma longa batalha legal pelos direitos dos residentes beduínos. Mas Umm al-Hiran só começou a ganhar atenção pública recentemente, quando uma petição lançada pelos residentes da aldeia foi rejeitada pelo supremo tribunal israelita, que reconheceu que a comunidade estava a viver na aldeia com a permissão do estado, mas declarou que as terras pertenciam ao estado e por isso os residentes não tinham quaisquer direitos legais sobre elas.

Sentei-me com Ahmad junto à mesquita, a beber café árabe e a ouvir as suas histórias. Connosco sentava-se um grupo variado: jovens activistas israelitas juntavam-se a velhos jornalistas, a políticos europeus e a turistas curiosos. O que os unia era a visita à aldeia em solidariedade com a causa beduína.

“Olho para estas oliveiras e penso que as árvores demoram muito tempo a dar azeitonas. Espero que os beduínos possam provar estas azeitonas e desfrutar dos frutos do seu trabalho”, diz Wolfgang, um político alemão em visita. 

Mas junto às oliveiras dos vales que rodeiam a aldeia já estão bulldozers estacionados, como ameaças do despejo iminente. Na semana anterior, campos agrícolas foram destruídos, e o terreno começou a ser preparado para construção.
Ahmad aponta o lugar onde terrenos cultivados já começaram a ser destruídos
A única opção dada aos residentes é mudarem-se para Hura, uma cidade planeada para beduínos. Muitos dos beduínos que vivem em aldeias não reconhecidas são forçados a mudar-se para povoações urbanas como Hura. O governo israelita fala dos benefícios do alojamento permanente das cidades e dos serviços públicos, usando o argumento do “desenvolvimento”.

Mas a verdade é que poucos querem mudar-se para as zonas urbanas sobrelotadas e empobrecidas planeadas para beduínos, e abdicar do estilo de vida pastoral e agrícola tradicional entre as comunidades beduínos. Muitos sentem que são forçados à sedentarização, e concentrados em cidades pobres onde há elevadas taxas de desemprego e criminalidade.

“As povoações planeadas para beduínos são como guetos”, diz-me Rafat, um activista beduíno e estudante de direito. Rafat diz-me que a desigualdade e a discriminação são persistentes. Diz-me que, se quisesse arranjar trabalho num restaurante em Be’er Sheva, por exemplo, o mais provável era que fosse rejeitado por ser beduíno. Com sorte, punham-no a trabalhar na cozinha, onde estaria longe do olhar dos clientes judeus israelitas.

Para os habitantes de Umm al-Hiran mudar-se para a cidade não é uma opção
Mais tarde conheci Aziz, residente na aldeia não reconhecida de al-Araqib. Aziz comparou as povoações planeadas para beduínos a campos de refugiados. “Forçam-nos a deixar as nossas aldeias e a ir para esses campos cheios de desemprego e pobreza. Ficam com as nossas terras, e acabamos a viver em cidades pobres e a trabalhar em quintas judaicas. Querem-nos como servos, como subordinados”.  

Mas Aziz recusa a subordinação. Apesar da sua aldeia já ter sido destruída dezenas de vezes, insiste em permanecer na terra que considera sua.