quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Se fosse uma ordem tinha que obedecer"

O cachimbo de água circulava de mão em mão, e a conversa ia animada no grupo diverso que se sentava num terraço do bairro Florentine, em Tel Aviv. Voluntários no exército israelita sentavam-se com activistas de lenço palestiniano ao pescoço, com jovens israelitas prestes a começar o serviço militar, com doutorandos em história em visita para congressos, e com simples viajantes curiosos.

Só uma cidade como Tel Aviv poderia reunir tantas visões diferentes, tantas versões da história e opiniões contrastantes. Só em Tel Aviv, onde há praias separadas para gays, para religiosos e para cães, a diversidade poderia juntar-se num terraço a fumar cachimbo de água, como a areia de cada praia, separada mas junta.

Foi num desses círculos de diversidade humana que conheci David. Nascido em Budapeste, David vê pouco futuro na Hungria e planeia pedir a nacionalidade israelita, garantida pelas suas raízes judaicas. A sua avó materna sobreviveu ao Holocausto, que matou cerca de 500 mil judeus húngaros. 

David veio para Israel para fazer voluntariado com idosos sobreviventes do Holocausto, e para se juntar ao exército israelita. Enquanto não integra o exército, é voluntário na base militar em Tel Aviv. A minha curiosidade levou a um tenso debate sobre o exército israelita.

A certo ponto da conversa coloco David num cenário hipotético: o que faria, se tivesse uma arma nas mãos, e se enquanto uma mulher desarmada se aproximasse dele, o seu comandante lhe dissesse para disparar? Em silêncio, David parou para pensar.

“Se fosse uma ordem tinha que obedecer”, responde finalmente. Tento conter a indignação e especifico: uma mulher desarmada, que nitidamente não é uma ameaça à segurança. Mas as ordens são para obedecer, e a resposta é final, aterradora: disparava, tinha que obedecer.

Eu não queria acreditar que o neto de uma sobrevivente do holocausto pudesse admitir tão naturalmente que dispararia sobre uma mulher desarmada. Eu não queria acreditar que ouviria esta resposta sentada no conforto de um terraço em Tel Aviv, e muito menos imaginar o que acontecerá quando David tiver uma espingarda nas mãos e tiver que enfrentar situações tensas. “Mas no exército nunca me pediriam para fazer isso”, acrescentou. 

Perguntei a David se não achava que tinha sido essa mesma obediência incondicional a ordens que tinha permitido o massacre de milhões de judeus durante o Holocausto. Abanou a cabeça, encolheu os ombros, disse que não era comparável.

Talvez não seja comparável, mas eu vi nessa resposta a disponibilidade para cumprir ordens, a obediência cega que torna os homens em máquinas. Vi o aparelho militar, que programa os soldados para não pensar, e as suas semelhanças com todos os mecanismos burocráticos que roubam aos homens a sua humanidade.

Nos meus encontros de checkpoint com soldados nos territórios palestinianos, vi esses homens-máquina, às vezes rapazes de 18 ou 19 anos a cumprir o serviço militar obrigatório em Israel. Carregam armas nas mãos e aparelhos nos dentes. Capacete, colete à prova de balas, metralhadora, rosto coberto. Deixam de ser rapazes que saíram há pouco do liceu. Rapazes com família e amigos, com vidas próprias do outro lado do muro que separa Israel dos territórios palestinianos. Passam a ser um número na máquina militar israelita, um número estacado à entrada do checkpoint a controlar quem entra e quem sai.