sexta-feira, 8 de maio de 2015

Marrocos: sobre o viajante privilegiado

Nos últimos dias da viagem a Marrocos confrontei-me com uma realidade dura e desconfortável, e duas questões importantes: a do propósito da viagem e a do privilégio do viajante.

Éramos um grupo de seis: três australianos, um americano, um canadiano, e eu. Depois do jantar caminhámos pelas ruas da velha medina de Marraquexe à procura de um bar. Já era tarde, e eu vi uma mulher sentada num colchão velho no meio da rua, com três filhos embrulhados em mantas velhas.

Encontrámos o bar, mas o rosto da mulher não me largava. Em uma hora gastámos 600 dirhams em cerveja e cocktails. Empregados vestidos com fatos negros e chapéus turcos iam trazendo as bebidas, ouvia-se Frank Sinatra e da escuridão da janela só se distinguiam dois minaretes iluminados. Falámos sobre viagens, cidades, paisagens. A conversa pairava à superfície das coisas: lojas, museus, aviões, bares… tudo flutuante, fútil.

Quando saímos do bar outras mulheres se sentavam no meio da rua, com filhos, algumas sem colchão. Uma mão estendida saía vazia de um corpo tapado e adormecido. Saía das profundezas da minha consciência para me lembrar como o mundo é desigual. 600 dirhams numa hora, e uma mãe que só possui um colchão. Turistas que viajam da Europa, do Canadá, dos EUA, e essas mães que não saem nem da rua onde pedem esmola. 600 dirhams numa hora fútil, inútil, e essa rua vergonhosa com tantas mãos vazias, tantas mães sem tecto. Porque é que viajamos? É descoberta, aprendizagem, ou prazer egoísta, fútil?


Nunca conheci viajantes marroquinos. Nunca vi em hostels jovens de nenhum outro país africano. Viajar é um privilégio que poucos podem pagar, e a mobilidade a que como europeus nos habituamos não é partilhada por outras nacionalidades. Ter um passaporte europeu é ter acesso a caminhos privilegiados, portas abertas. É não ser interrogado nem mal recebido nos aeroportos.
Em Fez conheci Abdellah, um psicólogo marroquino que teve que esperar meses e pagar muito dinheiro para conseguir o visto que lhe permitiria participar num projecto de voluntariado na Alemanha. E, no entanto, os hotéis em Marrocos estão cheios de turistas alemães, que para entrarem no país só precisaram de mostrar o passaporte, como eu. Passaporte: um sorriso, e bem-vinda a África.

A minha pergunta é: como usar o privilégio de forma positiva? Ou, pelo menos, como não deixar que se torne em indiferença cómoda? Talvez gastar 600 dirhams de forma mais sensata. Talvez tentar compreender porque é que a pobreza nas ruas de Marraquexe tem o rosto de mulher, de mãe.
No dia seguinte encontrei a primeira mulher que vi com os seus filhos, desta vez junto à mesquita Kutubiya, a principal de Marraquexe. Um homem que falava um pouco de francês foi o meu tradutor. Aquela mulher tinha sido repudiada pelo marido, e como não tinha o apoio da família, nem estudos que pudessem arranjar-lhe um trabalho para sustentar os três filhos, via-se obrigada a estar na rua a pedir. Dormia num armazém. Não tinha casa, nem qualquer tipo de segurança para os filhos que estavam quase em idade escolar.

A pobreza em Marrocos é maioritariamente feminina. E um problema que me remete de novo para Abdellah, o psicólogo que trabalha como terapeuta de jovens mães e mulheres abusadas. Mas dele falarei mais tarde.