quarta-feira, 15 de abril de 2015

Marrocos: onde começa o Lugar que Não Existe


Foi no início de 2015, em Marrocos, que eu decidi começar Este Lugar que Não Existe. Um novo ano começava e eu estava em Tânger, a dirigir-me para o sul. Decidi apanhar um táxi colectivo para Asilah, um daqueles táxis tão tipicamente marroquinos, que têm quatro lugares mas levam seis, sete pessoas. Estava à espera que o táxi enchesse para que pudéssemos partir para Asilah, que me tinham prometido ser uma bela cidade lavada de branco, com janelas e portas azuis viradas para o mar.


Quando éramos seis à espera de Asilah pudemos partir. Quatro homens iam atrás, apertados uns contra os outros e a falar muito alto, e eu partilhava o assento da frente com uma mulher marroquina, que usava na cabeça um lenço da cor das janelas de Asilah. Chamava-se Mariam. Falava um francês perfeito, que aprendeu durante os anos que viveu em Bruxelas com um marido agressivo. 

Ao longo da viagem foi-me contando a sua vida, e as suas histórias continuaram em Asilah, onde tinha nascido e para onde acabava de regressar, fugida do casamento que não fez por amor. Mas os olhos de Mariam eram os olhos de uma mulher apaixonada, confiante, que me mostrou com orgulho a sua cidade, encaminhando-me pelas ruas estreitas e tortuosas da velha medina. Mostrou-me a sua casa e o cemitério da sua família, o forno comunitário onde senti o cheiro do pão recém cozido, e o atelier do caligrafista que escreveu os nossos nomes: Marta, Mariam. مارتا , ماريم


Mostrou-me a fortaleza da cidade, construída junto ao mar por portugueses no século XV, e disse-me que os meus antepassados estavam ali, naquela muralha, naquela cidade branca e azul, e que os antepassados dela estavam em Portugal. Por isso eu podia dizer oxalá, e Mariam inshallah, o nosso entendimento era perfeito.

Tocámos a muralha com a palma das nossas mãos e sorrimos uma para a outra. Foi aí que nasceu Este Lugar que Não Existe, na cumplicidade dos sorrisos e mãos que tocam uma mesma muralha, para contar os momentos em que a existência se partilha.



Este Lugar Não Existe é a primeira frase de um poema de Herberto Helder, que morreu há um mês atrás, mas que nunca vai deixar de existir, porque “o poema faz-se contra o tempo e a carne”.